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'Crip Camp': Como grupo de jovens na era Woodstock mudou a inclusão social

Cena do documentário "Crip Camp: Revolução pela Inclusão" - Divulgação
Cena do documentário 'Crip Camp: Revolução pela Inclusão' Imagem: Divulgação

Mariana Tramontina

Colaboração para Ecoa

04/12/2020 04h00

Este acampamento mudou o mundo e ninguém conhece essa história.

A frase acima é do sound designer Jim LeBrecht sobre o acampamento de verão Jened, nos Estados Unidos. De fato, não é um nome muito popular. Mas o que aconteceu naquele lugar foi tão significativo que ele mesmo decidiu contar no documentário "Crip Camp: Revolução pela Inclusão". Em 1h48 de duração, o filme disponível na Netflix, dirigido por ele e por Nicole Newnham, mostra como aquele local transformou a vida de um grupo de adolescentes e, a partir dali, ajudou a mudar os direitos civis americanos.

O acampamento Jened, fundado em 1951 e fechado após o verão de 1977, parece em muitos aspectos como qualquer outro alojamento de jovens na era do amor livre. E justamente por ser assim, tão normal, é que evidencia seu maior triunfo: não havia tratamento diferenciado para seus frequentadores, todos jovens e adultos com algum tipo de deficiência, física ou intelectual, de variados graus e níveis de lesão, e em alguns casos com comprometimentos de comunicação.

Todo ano, o acampamento localizado nas montanhas de Catskills, no estado de Nova York, recebia dezenas de jovens com deficiência que encontravam ali um lugar onde poderiam ser quem eles eram: adolescentes. Piadas sujas, festas, música, paquera, desabafos: muito da convivência natual e sem barreiras entre eles foi registrado em imagens em preto e branco pela câmera de LeBrecht, nascido com uma malformação congênita chamada espinha bífida, na época em que ele frequentou o local.

Os monitores do acampamento eram jovens estudantes, sem deficiência, trabalhando como temporários. É fácil se deixar levar pela ideia de que, ali, os visitantes não estariam tendo o resguardo que recebiam em casa, mas era justamente por isso que eles se sentiam tão livres. Em rodas de conversas, eles expressavam sobre como se sentiam sufocados pela superproteção da família e até sobre a privacidade que desejavam e que não tinham. Em comum, todos eles tinham a ausência da convivência social: alguns porque eram abrigados institucionalmente, outros para evitar a exposição frente ao preconceito.

Ao final do acampamento, o sentimento agridoce de voltar para o "mundo real", onde seriam tratados novamente com exclusão e com sentimento de pena, era como um soco no estômago. E, por isso, na última noite os frequentadores passavam a noite em claro para aproveitar cada minuto da liberdade e do sentimento de ser tão normal quanto qualquer outro ser humano.

Você nunca seria escolhido para fazer parte de um time de beisebol lá fora, mas em Jened você tinha que se esforçar para rebater a bola. E se você não acertasse, que droga, você estava fora do jogo.

Lionel Je'Woodyard, um ex-monitor de Jened

Mas Jened é só o começo dessa incrível história. A experiência do alojamento fomentou um senso de comunidade único que alimentou diretamente o movimento americano pelos direitos das pessoas com deficiência na década de 1970. E é aí que 'Crip Camp' se torna um filme tão necessário para entender a difícil luta pela qual tiveram que passar. Naquela época, o mundo era bem diferente. Não havia rampas de acessibilidade nas ruas. Não havia Braille nos botões do elevador. Crianças em cadeiras de rodas eram rejeitadas em escolas por serem consideradas "riscos de incêndio".

Judy Heumann - Divulgação - Divulgação
Judy Heumann
Imagem: Divulgação

Judy Heumann, vítima de poliomielite aos 18 meses de idade e uma das frequentadoras mais ativas do acampamento, é um dos personagens principais dessa mudança nos Estados Unidos e que inspirou mundo afora. No acampamento, ela organizava sessões de conversa em grupo em que todos tinham o direito de se expressar e se manifestar, inclusive aqueles com dificuldades severas de linguagem, e todos eram ouvidos. Fora dali, ela se tornou figura pública ao participar da Ocupação 504 em 1977, um protesto que levou a mudanças significativas nas leis de reabilitação do país.

Liderando cerca de 150 pessoas com deficiência, Heumann e o grupo ocuparam e se recusaram a deixar o Departamento de Saúde, Educação e Bem-Estar de San Francisco até que fossem aprovadas leis por direitos iguais. Foram 25 dias ocupando o prédio, dormindo em colchões pelos corredores e discutindo ações. De certa forma, o espírito do acampamento Jened estava vivo ali. Mais tarde, Heumann, que hoje tem 72 anos, trabalhou como assessora especial para assuntos ligados aos Direitos da Pessoa com Deficiência no governo do ex-presidente Barack Obama (tanto ele quanto Michelle Obama assinam como produtores executivos do documentário).

O Camp Jened foi inspirado no festival de Woodstock e abraçou valores e comportamentos que quebraram paradigmas de uma sociedade conservadora. Foi assim que alguns jovens do acampamento associaram-se a outros movimentos sociais, como o dos negros e homossexuais, para a defesa de seus direitos. Com profunda empatia cinematográfica, o documentário equilibra a mensagem universal sobre inclusão social com histórias individuais dos líderes dos direitos civis. E com um vislumbre sobre perseverança e a engenhosidade humana, "Crip Camp" oferece algo que todos nós poderíamos usar mais: esperança para o futuro.

camp - Divulgação - Divulgação
Cena do documentário 'Crip Camp: Revolução pela Inclusão'
Imagem: Divulgação