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Casal "sangra" para o mundo inteiro em animação premiada sobre vida com HIV

Caio (esq.) e Tiago (dir.) estão juntos desde 2017  - Arquivo pessoal
Caio (esq.) e Tiago (dir.) estão juntos desde 2017 Imagem: Arquivo pessoal

Vanessa Fajardo

Colaboração para Ecoa

01/02/2020 04h00

Um teste rápido, cujo resultado sai em 25 minutos, mudou a vida do professor de educação física Caio Batalha Deroci, 30. Ao saber que o resultado do exame que detecta o HIV era positivo, ele sentiu um vazio na mente, seguido de uma enxurrada de dúvidas. "E agora? O que as pessoas vão pensar, como os meus amigos, família, colegas de trabalho vão reagir? Eram as perguntas que me vinham. Depois comecei a chorar. Liguei para uma das minhas melhores amigas, passei o fim de semana na casa dela tentando processar a informação", lembra Deroci.

O passo seguinte foi contar ao namorado (hoje, noivo), o diretor e roteirista Tiago Minamisawa, 35, com quem havia oficializado um relacionamento havia duas semanas, lá no início de 2017. No primeiro momento, Minamisawa ficou tão surpreso que achou que fosse uma brincadeira. Depois o acolheu da melhor maneira possível.

Ele me abraçou e ficamos em silêncio. Depois me falou que ia continuar me amando, que nada ia mudar, que íamos passar por essa situação juntos. Eu tive a sorte de ter um acolhimento muito bom" Caio Batalha Deroci, 30

Ele se recorda da enfermeira que o acompanhou no momento em que teve a confirmação do HIV. Ela segurou suas mãos, ligou uma música e até acendeu um incenso para acalmá-lo.

A morte nunca foi o grande medo do casal desde a descoberta do vírus. Eles sabiam que a esta altura, em 2017, a ciência tinha avançado e havia medicação eficaz para controlar o vírus. Já para o preconceito não havia remédio.

"Achei que minha vida ia acabar, que as pessoas não iam mais olhar na minha cara, que nunca mais ia me relacionar com ninguém. De certa forma, isso é uma morte e no começo senti um pouco", afirma Deroci.

Seu parceiro também tinha esse receio. Tiago Minamisawa conta que já havia pesquisado bastante sobre aids e HIV porque era o tema de um filme no qual trabalhou no ano anterior, em 2016, e estava "iniciado" no assunto. Por isso, nunca pensou em morte, mas temia pelo bem-estar social do namorado.

O nome Sangro é uma alusão à vida, já que "só quem está vivo sangra" - Reprodução/Sangro - Reprodução/Sangro
O nome Sangro é uma alusão à vida, já que "só quem está vivo sangra"
Imagem: Reprodução/Sangro

"Minha preocupação maior era pensar no que eu poderia fazer para que ele se sentisse bem. Me veio a vontade de cuidar, de proteger. Mas o preconceito o amedrontava. Ter HIV era um tabu, ele não sabia como contar para as pessoas, como elas iriam reagir", diz Minamisawa.

Seria como entrar em um segundo armário" Tiago Minamisawa, 35

'Falar sobre o HIV para o mundo'

Disposto a fazer o parceiro "falar sobre o HIV para o mundo inteiro", sem julgamentos, estereótipos ou rodeios, Minamisawa produziu, dirigiu e roteirizou a animação Sangro, que estreou no ano passado, rodou o mundo e levou mais de 20 prêmios dentro e fora do Brasil. Entre eles o de melhor curta-metragem brasileiro e melhor documentário do Anima Mundi 2019; melhor animação de Chicago 2019; melhor curta de animação do Festival de Havana; melhor documentário do Cinanima Portugal; e único filme brasileiro selecionado para o Festival de Annecy, considerado o festival mais importante de animação do mundo, no ano passado.

O nome Sangro é uma alusão à vida, já que "só quem está vivo sangra". "Também é porque a doença corre pelo sangue e muitas formas de infecção ocorrem por meio dele. Sangro também fala de um sujeito oculto que não pode se abrir e mostrar sua condição."

No filme, Deroci narra, em pouco mais de sete minutos, sua própria história ao descobrir o HIV, os medos, angústias e a trajetória até ter a carga viral indetectável. Sua imagem não aparece, apenas a voz. "Eu escolhi viver porque eu entendi que vale a pena. Viver é o que me cura, mas eu morri. Isso é verdade [...] Sabe o que eu percebo? Que eu transformei aquilo me perturbava em alguma forma de sabedoria, sei lá. E acessando esse lugar que eu tanto fugia acabei acessando uma fonte de tranquilidade. Só que não foi fácil, eu precisei de muita coragem", diz ele, em um dos trechos narrados no filme.

Inicialmente a identidade de Deroci não seria revelada na animação, ele só daria seu relato.Mas depois entendeu que o filme o ajudaria no processo de autoconhecimento. "Foi uma maneira de conseguir trabalhar todo esse processo em mim, de saber como estava me sentindo, foi um processo de cura. Eu não estava resolvido, fui trabalhando, lendo o texto, ouvindo", diz, ao reforçar que muitas pessoas só souberam que ele tinha HIV depois assistirem ao filme, assim como ele narra na história.

O namorado diretor lembra que, a princípio, por questões técnicas, cogitou contratar um ator para fazer a locução. Testou profissionais que têm HIV e são muito representativos nesta causa, mas achou que o resultado ficava muito "distante."

"Cheguei para o Caio [Deroci] e falei: tem que ser você, é você que eu ouço todo dia falando dos medos, das angústias, do preconceito. Você é a razão do filme existir. E ele topou [fazer a narração]", lembra Minamisawa.

Carga viral indetectável

Deroci passou por uma série exame regulares e testes para identificar o tipo de medicação necessária para o HIV. No início da medicação sentiu alguns efeitos colaterais como sono e dores nas articulações, mas seguiu a vida normalmente trabalhando e praticando exercícios. Em dois meses, a carga viral estava indetectável, ou seja, em um estágio em que o vírus não é transmissível.

No início do tratamento os exames ocorriam a cada três meses, hoje são semestrais. Para controle, ele ingere duas pílulas diariamente.

"Minha carga viral está indetectável, meus anticorpos estão lá em cima e não sinto nenhum efeito colateral. No começo achava que minha imunidade ficaria baixa, mas minha saúde está melhor do que a de muita gente que não tem HIV", comemora.

Minamisawa lembra que o tratamento não se difere do de outras doenças crônicas que exigem que o paciente se medique para o resto da vida, como diabetes por exemplo. "É necessário racionalizar dessa forma, quando você pesquisa, percebe que não tem muito drama. O drama maior é o preconceito social."

Quando os exames apresentaram uma carga viral indetectável, o vírus deixou de ser "um fantasma" na relação dos dois. "Com 'Sangro', o assunto voltou um pouco mais para gente, mas na nossa relação nem falamos mais sobre isso", explica Minamisawa.

Hoje, eles dividem uma casa no interior de São Paulo com o cachorro Ric e planejam morar fora do país. Em paralelo, Minamisawa trabalha em sua próxima animação em stop motion que conta a história de um personagem que está se descobrindo transexual.