Sem modismo

Advogado Thiago Amparo combate o racismo e quer disseminar estratégias para garantia de direitos humanos

Elena Wesley Colaboração para Ecoa, do Rio de Janeiro Arquivo pessoal

"Pessoas brancas costumam se considerar universais, enquanto pessoas negras podem falar apenas em nome de si mesmas." A leitura de como se dão as relações raciais no Brasil não é nenhuma novidade para o advogado Thiago Amparo, professor de direito internacional e direitos humanos na FGV-SP e ex-secretário-adjunto de Direitos Humanos e Cidadania da cidade de São Paulo. Contudo, nem mesmo a série de diplomas e títulos o priva da percepção social de que pessoas negras são especialistas somente quando o assunto é racismo.

É o que o jurista ainda sente quando aborda na TV fechada, nos portais e no Twitter - rede na qual é assíduo - um dos temas que mais domina: direito internacional, em episódios como as eleições nos Estados Unidos, a invasão de supremacistas brancos ao Capitólio e a política externa brasileira.

"É desumanizador que brancos ajam como se nós pudéssemos falar apenas a partir da nossa experiência, e não do nosso conhecimento. Quando o Emicida fala de história e a Djamila [Ribeiro] de filosofia, estamos saindo das caixinhas em que tentam nos colocar. A intelectualidade negra pensa a sociedade como um todo, na ciência, na política, na economia, por isso é importante ouvir pessoas negras em todas as áreas".

Fora das telas da TV e dos celulares, Thiago tem influenciado o debate por justiça a nível federal. Após o assassinato de João Alberto por um segurança numa unidade do Carrefour, o especialista apresentou na Câmara dos Deputados algumas medidas para que o Estado combata os recorrentes crimes de morte, maus tratos e tortura em shoppings e supermercados, entre elas a investigação dos casos - geralmente banalizados à legítima defesa dos agentes de segurança - e a suspensão do funcionamento dos estabelecimentos.

Num cenário em que tudo parece ser justificado pelo "racismo estrutural", o professor de direitos humanos propõe que haja mais comprometimento individual para as mudanças: "Sem quebrar as lógicas racistas individuais e interpessoais, a gente não vai conseguir mudar a estrutura, porque a estrutura é feita de pessoas, relações e instituições". E faz ponderações à "moda" da diversidade, ao levantar a reflexão se desejamos um mundo que pareça mais colorido ou mais justo.

Para 2021, além de tomar a vacina contra a covid-19, Thiago planeja desenvolver um núcleo de pesquisa em justiça racial e direito na Fundação Getúlio Vargas, na qual leciona, com o apoio de outros intelectuais negros, além de escrever um livro sobre a crise da democracia e os desafios para o Brasil a partir dos olhares das pessoas negras e LGBTQIA+, que será publicado pela Companhia das Letras no início do ano que vem.

Nessa entrevista a Ecoa, Thiago Amparo explica como a Justiça pode responsabilizar governantes negligentes frente à gravidade da pandemia, fala sobre o papel democrático do STF e contextualiza a tensão política e racial nos EUA.

Ecoa - Durante audiência na Câmara dos Deputados sobre o assassinato de João Alberto no Carrefour, você apresentou uma série de medidas para que o Estado responsabilize as empresas em relação a crimes cometidos por agentes de segurança privada. Quais seriam as mais relevantes?

Thiago Amparo - Pessoas não negras não entendem por que o caso do João Alberto vai além da brutalidade. Em geral, pessoas negras sabem que no ambiente público elas não são vistas como cidadãs, a polícia não considera seus direitos. No espaço semiprivado, como shoppings, mercado e lojas, elas não são vistas como consumidores, e sim alguém que vai roubar. Em muitas cidades não se tem parques, praças, a gente sai para passear no shopping, no supermercado, que é uma lógica capitalista de a sociabilidade se dar por meio de relações comerciais. Nessa linha, pessoas negras são colocadas como não consumidoras e corpos que podem sofrer violência brutal.

Então, em primeiro lugar é proibir o uso da força em qualquer circunstância dentro de um supermercado. Em segundo, é necessário ter investigação sobre casos de tortura em mercados, seja uma CPI no Congresso ou uma investigação no Ministério Público. O terceiro ponto é que os Estados tenham uma legislação que proíba os estabelecimentos de funcionarem em casos de tortura por agentes de segurança privados. O Estado de São Paulo tem uma lei que permite a suspensão de licença para empresas condenadas por trabalho escravo. E por último, há um movimento para que empresas levem a igualdade racial a sério, com metas definidas pelos parâmetros de ESG, que é a sigla em inglês para meio ambiente, social e governança.

As ações do Carrefour se mantiveram altas logo depois do assassinato do João Alberto. Enquanto não houver uma ação pública para punição dessas empresas pela forma como agentes privados utilizam a força, não haverá desincentivo econômico. Pelo contrário, o racismo pode ser e se mantém lucrativo, que é o que a teoria racial chama de convergência de interesses.

As pessoas se questionam como o mundo ainda é racista, mas ele o é porque há quem se beneficie. Sem racismo, não haveria precarização dos serviços públicos, do trabalho, e muitas empresas deixariam de funcionar.

Por outro lado, temos um movimento de empresas pautando a diversidade. Você defende que a diversidade é insuficiente para superar o racismo. Por quê?

É insuficiente porque temos que pensar qual mundo queremos construir. Não queremos um mundo que pareça mais colorido, e sim mais justo! Se as empresas começam a conversar sobre a temática racial e isso contribui para contratar mais pessoas negras, colocá-las em posições de poder, enxergar os casos de racismo dentro da instituição, já é um ganho porque endereça uma desigualdade salarial histórica. Mas o racismo vai continuar sendo perpetuado na sociedade como um todo se a gente não pensa na estrutura: precarização do trabalho, neoliberalismo e todas as outras dimensões.

Você despontou midiaticamente no contexto do assassinato do George Floyd e dos protestos a partir disso. Passamos a ver muitos comentaristas negros falando sobre o assunto, e deu a impressão que só lembram de convidar pessoas negras quando o assunto é racismo. Você percebeu isso ao longo da sua carreira?

Sim, percebi muito isso quando comecei a falar na televisão sobre política externa brasileira, suprema corte dos Estados Unidos, eleições. Isso acontece quando o Emicida fala sobre história, a [jornalista] Flávia Oliveira fala sobre economia. Uma das formas de infantilizar ou domesticar - como eu chamo - pessoas negras é colocá-las numa caixinha de só falar sobre racismo. Enquanto as pessoas brancas se gabam pelo debate ou jornal diverso que têm ao chamar uma pessoa negra para falar sobre a questão racial, é como se reduzissem toda a intelectualidade negra a uma crítica pontual.

Domesticar é uma estratégia de manutenção de privilégios. Quando a gente fala sobre o racismo ser estrutural, é porque ele permeia todas as áreas. Quando pessoas brancas não falam da questão racial ou não pensam a partir desse olhar ao falar de qualquer tema, significa que não estão abordando o assunto de forma adequada. É como falar da invasão ao Capitólio sem mencionar o discurso supremacista branco. Não é sobre lugar de fala, mas sobre não entender aquele fenômeno e não abordá-lo na totalidade. Vai ser mais revolucionário quando a gente tiver pessoas negras participando do debate público sobre todos os temas. Há um entendimento de que pessoas brancas são universais, são seres humanos, e de que pessoas negras podem falar somente como pessoas negras, mas a intelectualidade negra está pensando a sociedade como um todo, na política, economia, direito, ciência.

Os avanços que temos hoje se devem a termos pessoas negras em posição de destaque em alguma instância. O problema não vai ser resolvido por uma empresa, é luta na rua, é disputa política, é debate na televisão.

Thiago Amparo

Arquivo pessoal

No Brasil, enfrentamos um colapso da saúde e o impacto da negligência de governantes no contexto da pandemia de covid-19. O que a Justiça pode fazer para responsabilizar os envolvidos?

Tem uma responsabilidade individual dos governantes, já que o Código Penal prevê uma série de crimes ligados à saúde pública. O Ministério Público abre uma investigação contra a secretaria de saúde, por exemplo. Mas existem outras responsabilidades. Na administrativa, é possível verificar o manejo de recursos, se há dano aos cofres públicos. Há indícios de que no orçamento federal não se gastou o que poderia ser investido para evitar o caos da saúde pública. E existem ainda as ações coletivas, que tentam influenciar a política pública para garantir que as pessoas tenham acesso a vacina e insumos. São os casos da determinação do STF por um plano de imunização ou quando os estados recorreram ao Supremo para executar medidas de distanciamento social independente das definições do Ministério da Saúde.

Vemos apoiadores do presidente Jair Bolsonaro ou até mesmo outras correntes ideológicas questionarem até que ponto o STF pode dizer o que o Executivo deve fazer. Como você avalia essa crítica das pessoas ao papel do Supremo Tribunal Federal?

A Constituição diz que o Judiciário não pode ser privado de analisar uma tentativa ou uma violação de direito. Isso é uma garantia fundamental. Podem haver exceções, mas dificilmente o Judiciário vai intervir em escolhas políticas cruas como escolher entre a vacina x ou y ou investir mais nessa política pública e não naquela. Mas se essa política pública determina que não haja vacina, por exemplo, ela interfere na garantia de direitos das pessoas.

Tanto direita quanto esquerda recorrem ao STF quando entendem que há uma violação de direitos, criticam o foro privilegiado ou reivindicam liberdade de expressão quando são restringidas no uso das redes sociais. Os partidos perdem uma votação no Legislativo ou o texto não sai como queriam, e eles recorrem ao STF. O Supremo tem que ter muito cuidado para não ser instrumentalizado, mas também não pode deixar de olhar o que está por baixo disso. Claro que não dá para a gente ser inocente de achar que o Judiciário está à parte da política como um todo.

Você mesmo fala sobre o Judiciário não estar isento da perpetuação do racismo institucional e tantos outros preconceitos intrínsecos à sociedade brasileira. Como ele acontece nessa instância e quais ações foram tomadas recentemente?

O Judiciário não está fora da estrutura de classes da sociedade brasileira, que é a mais desigual do mundo do ponto de vista econômico. Ele está encastelado em seus privilégios e isso não é de hoje, já que foi constituído ali perto da independência do país, numa lógica aristocrata e de cortes. A elite via na faculdade de direito uma possibilidade de manutenção de seus privilégios e depois julgaria de forma classista, influenciada pelas teorias eugenistas do século 19 e com uma ideia de que o criminoso nato é um jovem pobre e negro. Como diz Sueli Carneiro, "raça, estrutura e classe" não dá para dissociar. Temos pouco mais de 10% de negros no Judiciário, proporção muito menor do que a população para a qual ele atua.

Sempre digo que não é sobre ele ser representativo em quantidade, é sobre entender as questões que afetam quem ele julga. Por exemplo, o STF decidiu um caso recentemente sobre uma pessoa ser mantida presa por reincidência após ter roubado dois shampoos. Não tem lógica do ponto de vista social, da reabilitação, nem do econômico, porque o Estado gasta muito mais com a pessoa presa do que o valor do produto furtado.

Por outro lado, temos uma mobilização de juízes e juízas negros e negras que têm levado a questão da igualdade racial. Recentemente apresentaram ao Conselho Nacional de Justiça um relatório com propostas de reforma, como o aprimoramento do sistema de ação afirmativa e a discussão de temas que afetam mais a população negra, como as drogas.

São brancos que julgam réus negros, essa é a estrutura diária do Judiciário e que precisa ser repensada para dar conta da sociedade.

Thiago Amparo

Arquivo pessoal

O conceito de "racismo estrutural" se popularizou a partir do trabalho do professor Silvio Almeida. Você acha que ele sofreu uma banalização pelas pessoas, como se já não houvesse qualquer responsabilidade individual em crimes de ódio?

Eu perguntei isso ao Silvio na entrevista dele no programa Roda Viva, se não seria uma forma de expiar a culpa, como se as pessoas dissessem: "Não é um racismo meu, está na estrutura, não tenho nada a ver com isso". E o Silvio, muito corretamente, respondeu que não, pelo contrário. Por ser estrutural, aumenta a responsabilidade individual de endereçar esse racismo, porque nós todos fazemos parte dessa estrutura. Ele parte de concepções, estereótipos que temos sobre o sujeito negro e, ao mesmo tempo, se reproduz nas nossas relações: quem a gente ama, quem é nosso amigo, como a gente interage com os colegas de trabalho negros. E as relações interpessoais resultam no ponto de vista econômico, cultural e político. As dimensões não estão separadas, elas se retroalimentam. Sem quebrar as lógicas racistas individuais e interpessoais, a gente não vai conseguir mudar a estrutura, porque a estrutura é feita de pessoas, relações e instituições.

Quando a Magalu contrata 20 trainees negros, não vai mudar a sociedade como um todo, somente aquelas relações, mas ela contribui com o debate. É por isso que a Hannah Arendt fala de responsabilidade individual em tempos de totalitarismo, ela diz que quando a culpa é de todo mundo, a responsabilidade é de ninguém. Ou seja, quando a gente não se sente responsável pela mudança nas nossas ações e nos espaços em que estamos, a gente não consegue mudar nada.

E que mudanças o Thiago Amparo pretende promover em 2021? Quais são seus futuros projetos? Ouvi dizer que você estava escrevendo um livro...

É uma análise de necropolítica no Brasil. Vou falar sobre a crise da democracia e os desafios de hoje a partir dos olhares de pessoas negras e LGBTQIA+. Será no formato de ensaio, próximo ao que tenho publicado na Folha [de São Paulo]. No segundo semestre, começo o pós-doutorado em Nova York. Pela Fundação Getúlio Vargas, conseguimos recursos de Google e Open Society para pesquisar segurança pública, violência policial, equidade racial nos espaços públicos e privados, raça e discurso de ódio na internet no Núcleo de Pesquisa Justiça Racial e Direito. A ideia é ter pesquisadores negros para produzir conhecimento. Temos cinco ou seis agora, vamos trazer mais. E tomar a vacina, é claro!

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