De carne, osso, fé e coração

Erika Hilton fala sobre luta, autocuidado, amor e não ser mais a primeira mulher trans nos lugares

Tereza S. Tessaro Colaboração para Ecoa, de São Paulo Karime Xavier/Folhapress

Revisar o processo de despertar e reconhecer nossas potências e fragilidades, com outras visões de mundo e de vida foi o modo com que a vereadora Erika Hilton nos ensinou a caminhar sem desistir ou ignorar nossas dores, olhando para o passado e construindo, a partir dessa bagagem, nossas jornadas até o futuro.

O valor do amor e a transmissão de sua mensagem talvez sejam das missões mais dolorosas na vida de qualquer pessoa, principalmente para aquelas a quem o afeto costuma ser negado. Perdoar, viver, aprender e não alterar a natureza desses aprendizados deveria ser treino diário para termos musculaturas emocionais mais fortes.

Nessa conversa com Ecoa, Erika Hilton compartilha uma pouco de sua intimidade e aprendizados que a ajudaram a chegar à Câmara Municipal de São Paulo não apenas como a primeira vereadora trans da capital paulista, como a mulher mais votada nas eleições 2020. "Nós somos a ponta de um iceberg de luta, de ascensão, de abertura de caminhos. Só estou onde estou graças às mulheres e homens que vieram antes de mim, que lutaram, morreram e abriram possibilidades", diz.

Ela nos ajuda a compreender que o autocuidado é sentir o toque de sua pele e lembrar o prazer de estar viva, por mais difícil que tenha sido essa caminhada até se ver sentada em frente ao espelho. Chorar, ter dúvidas, medos e incertezas não te faz uma pessoa despreparada, mas sim uma pessoa totalmente humana.

Para a sociedade cisgênera, os sonhos da comunidade trans podem ser lidos como utópicos, mas não. São, em sua essência, básicos. Direito à educação, à saúde, à moradia; direito à vida e ao amor. Sabemos, vivemos e reafirmamos que continuaremos construindo nossas famílias do jeito como as imaginamos, alimentando nossas relações e redes de segurança da melhor forma possível e, nesse futuro, visando inclusive uma legislação que englobe aposentadoria dentro das nossas realidades.

O desejo de viver de Erika, de levar o sorriso por onde passa, possibilita ampliar as vozes de quem ainda não pode ser ouvido, conhecer e construir um mundo real. Um mundo no qual todes tenham a oportunidade de viver como, quando e onde quiserem, mas lembrando que por trás de tantas lutas, resistências e conquistas sempre haverá uma figura humana com carne, osso, muita fé e coração.

Ecoa - Queria saber um pouquinho melhor como você faz para renovar suas energias, os seus sonhos e desejos? O que ajuda você a manter esse sorriso?

Erika Hilton - Ai, mana, não é fácil assim. A vida é um desafio constante. Ser mulher, ser negra, ser trans, ser da periferia, ter vindo das ruas. É um caminhar bem duro. Mas tudo isso se transformou em potência, tudo isso se transformou em energia para que eu ocupasse o lugar onde estou agora e para que eu fizesse história. Acho que eu me amparo e me revitalizo e me reenergizo com as minhas. Me reenergizo com a história, quando vejo quão mais difícil já foi — apesar de agora ser muito difícil —, me sinto forte, preparada para articular. Eu me revitalizo também me fechando em casa, ficando sozinha, me conectando com as coisas que gosto de fazer, com as leituras, com os meus momentos de distração. Esse cuidar de si tem sido muito difícil, porque ter um tempo para a gente diante de uma demanda de coisas para serem feitas é um desafio. É uma forma de me reconectar com a história do passado, com a ancestralidade, para entender que esses caminhos foram abertos para que eu pudesse chegar até aqui. É o que me dá o fôlego para me manter de pé para acordar, mesmo com a vontade de permanecer o dia inteiro na cama e dizer "não, preciso levantar porque tem um propósito nesse levantar".

Tem uma campanha que tem proliferado bastante durante a pandemia que é "autocuidado não é só skin care". O que você aconselha para as pessoas terem esse autocuidado para além da skin care?

Eu vou começar com skin care e vou falar para além dele. Eu acho que o skin care é um momento muito seu, que você cuida da tua pele, do teu cabelo. Acho que esse é, sim, um primeiro cuidado, mas fazendo não como uma coisa mecânica. Como uma coisa de se tocar, de valorizar sua pele, sentir o cheiro, os aromas, se permitir viver aquele momento como um momento de amor consigo mesma. Já é um respiro, se olhar pro espelho, aceitar a sua imagem, aceitar quem você é, como você está. Isso é muito importante. E eu sempre recomendo dormir bastante, faz muito bem. Durmam, descansem, se não derem conta de acompanhar esse ritmo frenético da competitividade, do capitalismo.. Não tem como estar informada sobre tudo. Vou dar aqui uma dica de uma coisa que eu mesma não faço por conta da correria: se alimente corretamente, beba água. Saiba que estamos em um ano completamente caótico, diferente de tudo, e que a gente não vai conseguir dar conta de tudo. Então, cuide da saúde mental.

Compreenda quais são seus limites, até onde dá para ir. Não entenda esses limites como um fracasso, mas como respeito, como um autocuidado. E aí, a partir desse autocuidado, vai cuidar da pele, da mente, vai ler, vai parar para assistir um filme. Ouçam músicas, a música alegra a alma, a música traz uma paz para o espírito. Transem, se toquem, se amem. Acho que é isso que precisamos fazer nesse momento tão caótico, cheio de desamor, cheio de desafeto. Estar rodeado de pessoas queridas, fazendo coisas leves e gostosas, cuidando de nós, cuidando do outro e tornando os dias que são tão duros em mais leves, na medida do possível e dentro da realidade de cada uma das pessoas.

Adorei que você deu essa dica, porque o pessoal não entende como é importante na transição uma coisa comum que é tomar banho, mas é um momento que você está reconhecendo o seu corpo.

Exatamente!

O que você está sentindo, está respirando... Conversem com suas amigas, não tenham medo de mostrar fragilidade, não precisa ser forte todo o tempo. E aproveitando esse gancho sobre a nossa comunidade e ainda sobre esse período pandêmico... Você acha que a nossa comunidade fortaleceu os laços durante a pandemia?

Vou ser sincera, eu acho que a pandemia mostrou que quando a gente está com as mãos segurando umas nas outras é mais fácil. Eu não sei se posso afirmar que ela estreitou os laços, a comunidade é muito ampla. Eu acho que deu um chacoalhão, um "presta atenção, vamos acordar", porque o ódio, o inimigo, a precariedade, o desemprego, ele sempre bate primeiro na nossa bunda. Se a gente não tiver uma uma forma de pensar uma fonte de renda, uma forma de pensar em nós, em como vamos lidar com as adversidades da vida, vai ser sempre mais difícil para nós que já somos a escória da escória. O egocentrismo, a individualidade, tudo isso também é muito intrínseco na humanidade e nós fazemos parte dessa humanidade, apesar de tentarmos nos descolar para dizer "ah, a comunidade LGBT é uma coisa a parte". Isso faz de nós seres humanos cheios de falhas e acertos, então eu não sei responder.

Acho que o caminho para que a gente fortaleça, estreite e aprofunde essas relações de troca, de confiança, de amparo é se olhar e saber se colocar no lugar do outro. Isso não significa se amar, estar todo o tempo junto. Eu não sou obrigada a amar todas as pessoas para compreender a necessidade de viver em coletividade, o sentido de Ubuntu "eu sou porque nós somos". Não é porque eu amo a todos, é porque eu entendo que em sociedade para sobreviver contra os inimigos todos que estão postos — a branquitude, o classicismo, o racismo, a LGBTfobia —, eu preciso estar fortalecida e conectada com as minhas redes. Claro que vão ter pessoas que vou amar profundamente, mas nem todas eu amarei e isso é normal. Porque, se a gente passa a romantizar as ditas minorias, que nós sabemos que não são minorias, a gente cai no delírio de que toda travesti, toda pessoa negra é incrível, maravilhosa e tira a subjetividade. Tira a individualidade do ser, coloca dentro de uma caixinha estereotipada. Isso para mim é mais um reflexo das violências estruturais. Todo mundo se constrói a partir da sua própria personalidade, da sua subjetividade, do lugar aonde está, e tem muita gente LGBT, negra, mulher que não presta, que é mau caráter, que tem uma má índole. E isso tem que ser respeitado, porque isso é humanidade.

Quando a gente diz que todos somos iguais, é roubar a subjetividade, é singularizar uma pauta. Nós somos plurais e para aprofundar essa pluralidade e nos conectar, nós precisamos nos colocar mais no lugar do outro, compreender a importância de estarmos unidas, porque quando estamos fortalecidas e unidas podemos chegar mais longe, podemos fazer história.

Precisamos entender uma forma de nos fortalecer, de nos amparar para que saíamos desse lugar de marginalização, para que saiamos desse lugar de escória, para que resgatemos a nossa humanidade.

Erika Hilton

Sinto um desconforto quando vejo a comunidade cisgênera brincando de prostituição ser uma alternativa ou de vincularem nossos rostos só em período sazonal, como se não tivéssemos potência para ocupar outros espaços. Como você lida com o fato de ser a primeira ou a única mulher trans nos espaços, não necessariamente só na política.?

Eu acho assustador quando vejo pessoas se vangloriando e sentando nesse lugar de ser a única ou de ser a primeira, quando nós temos uma história de séculos de batalha que mostra que nada começou aqui, nem agora e nem em nós. Nós somos a ponta de um iceberg de luta, de ascensão, de abertura de caminhos. Só estou onde estou graças às mulheres e homens que vieram antes de mim, que lutaram, morreram e abriram possibilidades. Ser a primeira e a única nos lugares é revoltante, porque significa que as que vieram antes de mim foram mortas, boicotadas, impedidas de estarem nesse espaço. E também é louvável estar nesse lugar porque significa que, com articulação, que com coletividade e com luta, nós conseguimos romper estatísticas e barreiras e ocupar os lugares que nos foram roubados, que nos foram negados.

Não é possível que só agora uma mulher trans e negra quisesse ocupar o espaço da política ou pudesse ou conseguisse. O sistema se organizou o tempo inteiro contra essas narrativas. É importante que sejamos a única de vários lugares para que esse quadro vá se transformando, para que o nosso corpo vá se tornando natural e comum cada vez mais em todos os espaços e a sociedade compreenda a nossa existência, a nossa humanidade e a naturalização da nossa identidade.

E como você pratica o didatismo nesses novos espaços que estamos conquistando?

Não tenho outra escolha. Infelizmente, a gente precisa desenvolver uma empatia, porque a precariedade cis e branca precisa que alguém chegue lá e aponte os caminhos a quem está disponível, aberto e com ouvido atento para escutar que as coisas estão mudando — e que elas têm que mudar porque da forma como está, não está bom nem para a cisgeneridade branca. É preciso respirar fundo, engolir a seco a raiva, o ódio, a vontade de pular e gritar e dizer: "eu tenho um propósito, o meu propósito é transformar a sociedade, o meu propósito é que cada vez mais pessoas compreendam as violências estruturais e estruturantes, que as pessoas compreendam o que é o racismo". Preciso cumprir o papel de interseccionalizar as minhas pautas com todas as outras causas que existem na sociedade para que as pessoas compreendam por que eu sou a primeira. Porque as outras não chegaram até aqui e [mostrar] quais são os movimentos que precisam ser feitos para que esse cenário mude.

Ter que compartilhar isso de forma gratuita com quem não merece é um desafio. Mas a gente não faz isso pelas pessoas, a gente faz isso pela sociedade. É sobre nós, é por nós, é para nós. Assim que eu desenvolvo um processo de pedagogizar, de mostrar os caminhos e de mostrar o quanto o processo que nos trouxe até aqui é um processo nefasto, de morte, segregacionista, seletivo e que não dá mais para as pessoas continuarem pactuando com esse tipo de coisa. É preciso transformação, é preciso abrir os olhos e acordar porque ainda dá tempo. É isso que me faz pensar e desenvolver um diálogo com quem vive numa bolha, num delírio branco cisgênero e não viu que a vida é muito mais do que só esse castelinho que contaram para eles.

Karime Xavier/Folhapress Karime Xavier/Folhapress

Quando conseguimos chegar a um espaço e estamos nos consolidando, as pessoas começam a subestimar a nossa potência. Como você lida e rompe com isso?

Olha, eu rompo com isso mostrando na prática que nós não somos as mais fracas, que não existe essa do mais forte supera o mais fraco, se o que a vida oferece para uns e outros é tão diferente. Esse darwinismo social é superado a cada conquista, a cada realização e a cada demonstração que não estou presa a uma caixinha, de que eu não sou só uma coisa, de que eu não vou ser restrita a, por exemplo, uma vereadora da causa trans e da causa negra. Eu quero falar de cidade, eu quero falar de orçamento, eu quero falar de educação, de transporte público, de cultura, de meio ambiente, de lazer, porque eu permeio por todos esses lugares, porque eu vivo tudo isso, sou uma cidadã.

Tenho bagagem, história e competência intelectual de pensar e elaborar para além do meu corpo. Claro que o meu corpo estará na centralidade, porque ele tem demarcadores fundamentais para discutir o que é educação, o que é o transporte público, o que é a saúde municipal, estadual, enfim. Mas acho que não me reduzir, não me permitir ser enquadrada em um único lugar, e mostrar a partir de práticas transformadoras que posso fazer mais, de que sei fazer mais, de que tenho condição de ir além. Eu estou viva e estive diante da morte inúmeras vezes. Driblei todas elas. Estou viva e não só viva, estou positiva, incomodando, construtiva.

Qual é o conselho para a nossa comunidade seguir essa jornada de cabeça erguida no dia a dia, de reconhecerem as nossas potências?

É olhar para trás. Eu sempre faço isso. Olhar para a história e ver a responsabilidade política que nós temos, social e política, aí para quem acredita na espiritualidade, espiritual também, com quem veio antes de nós e lutou para que nós estivéssemos aqui. Desistir seria muita covardia e seria desprezar a luta de quem lutou muito mais arduamente para que nós chegássemos aqui. Então que a história do passado sirva para nos fortalecer, para nos encorajar a continuarmos em frente, a não entregarmos de bandeja. Sei que não é fácil, que o sistema o tempo inteiro atua e trabalha na tentativa de tentar nos matar, mas que nos sejamos mais fortes, que nós busquemos a resistência e a força dentro de nós e nas pessoas que estão ao nosso redor, que nós tenhamos um propósito para nos mantermos vivas, sadias e combativas.

A nossa estadia no mundo não é uma estadia de passagem, nós temos um propósito. Nós temos um trabalho coletivo a ser cumprido, mudar e movimentar as estruturas. Então saibamos que todes nós fazemos parte de um processo revolucionário e transformador. E que isso sirva para nos dar coragem, que isso sirva para nos dar ânimo, que a gente pare quando for necessário parar, porque nós somos heroínas. Nós somos as responsáveis por essas mudanças todas que estão acontecendo.

Karime Xavier/Folhapress Karime Xavier/Folhapress

Você acha que é possível a gente sonhar em construir uma família sem ser esse modelo cisgênero ou isso é uma utopia?

É super possível, e eu acho que nós já fizemos isso. As casas de house, de vogue, as travestis nas ruas quando chamam uma a outra de mãe e filha.. eu mesma tenho minhas próprias filhas. Acho que a gente já construiu esse lugar do outro modelo de família. Acho que nossas famílias são exatamente para suprir o lugar da ausência da família biológica quando nós nos colocamos enquanto um corpo dissidente, um corpo transvestigênere e nós queremos que essas famílias sejam famílias de troca, de afeto, de conexão, de abertura, de saber que não estamos sozinhos no mundo. A família é uma base importante, mesmo a família biológica quando é uma família que compreende. Você se torna uma pessoa mais preparada para o mundo quando tem amparo, amor, proteção na infância, liberdade para exercer a sua identidade de gênero.

A família biológica, quando ela não é tóxica e violenta, cumpre um papel muito importante em quem será esse corpo LGBT no mundo e como ele vai driblar as adversidades, se não vai cair na cracolândia, se ele não vai ficar aprisionado numa esquina de prostituição para sempre. A infância é um período muito importante e ter esse amparo, esse apoio e essa liberdade na infância, que é o que eu tive, nos faz saber o que é ser humana, o que é ser amada. E aí quando a família rejeita por conta das violências, ter uma família com que a gente faz trocas, troca aprendizado, aprende o pajubá [vocabulário LGBTQIA+], que a gente sabe que estamos ali umas pelas outras. Família é a junção de pessoas que se amam, que se respeitam, que se colaboram, que se querem bem, que sentem falta umas das outras, e eu acho que nós já conseguimos mostrar este modelo novo diferente do que é ser família, do que é a construção e a concepção de família para além da caixinha cis hetero patriarcal normativa.

Como funciona para você a relação com a sua família? Você fez as pazes com a sua mãe depois de uma longa jornada.

A minha família sempre foi uma família muito querida, muito unida, que me deu muita proteção, amparo, amor, cuidado. A minha infância foi muito privilegiada, muito protegida, onde eu nunca fui reprimida por expressar uma identidade diferente daquela que foi imposta ao meu corpo, e isso me permitiu exercer, existir. Aí, depois, o fundamentalismo religioso entra dentro da minha casa, coopta a minha mãe, faz uma lavagem cerebral, e ela reage da forma mais abrupta. E logo, muito rápido, a gente se reconecta. A minha família é a base de tudo. Eu só sou quem eu sou porque a minha mãe compreendeu a gravidade do que ela havia feito, foi me procurar, me resgatou e me possibilitou ter um lar, comida, não ter que me preocupar com as contas, não precisar ir para a prostituição para sobreviver. Só assim eu voltei a estudar, fui para universidade.

Ter tido família e depois ter perdido numa ruptura por um período curto, mas ainda assim perdido, fez com que eu entendesse que aquela condição desumanizadora das ruas não era orgânica e natural. Então por isso uma inquietação para não me acomodar naquele espaço. Para mim, ela é uma grande base, uma grande referência, mas que precisa ser repensada, questionada, afrontada muitas vezes para sair dos lugares de conforto. Não é uma coisa só da minha família, é uma coisa da humanidade.

Acho que cumpro um papel também de transformar o pensamento dessa família, de mostrar que o mundo é além daquilo que foi contado para ela. Acho que o primeiro papel enquanto militante ativista, alguém que luta pela transformação social, é conseguir mudar as pessoas que estão próximas, que me criaram, que me viram crescer, que me conhecem. Se consigo fazer esse trabalho dentro de casa, é óbvio que conseguirei fazer fora da minha casa.

Tenho uma amiga advogada que estuda direito previdenciário e estava preocupada com a aposentadoria trans por causa da nossa expectativa de vida. Você acha que é possível uma legislação que englobe a velhice dentro da nossa realidade?

No Brasil, a expectativa de vida para pessoas trans é de apenas 35 anos, segundo dados do IBGE.

Eu acho que é possível, mas não está perto de acontecer, nem fácil, porque primeiro a gente vai ter que conseguir garantir o status quo de humanidade, de que merecemos uma aposentadoria, de que não merecemos estar 90% [das mulheres trans] nas esquinas de prostituição, de que nossas vidas não valem menos do que a vida de outras pessoas. E até chegar nesse lugar muita água vai rolar. É possível, mas vai levar muito tempo ainda, porque o que nós vemos hoje é uma retirada de direito, um retrocesso daquilo que nós já conquistamos, uma perda gigantesca de coisas que já estavam asseguradas e pensar em uma previdência que trate da temática transvestigênere, de mulheres e homens trans, de uma forma humana e levando em consideração todo o contexto social, a expectativa de vida dessas pessoas é uma realidade muito distante.

Temos que traçar, sim, esse caminho, mas ainda estamos longe porque não somos nem vistas e respeitadas enquanto cidadãs, enquanto humanas. Primeiro nós teremos que colocar muitos tijolinhos nessa estrada para chegarmos até o seu lugar. Pensar nele é um fato, a utopia não é uma coisa impossível ou uma mola desestimuladora, muito pelo contrário. A utopia é uma mola que nos impulsiona à transformação, que nos encoraja à mudança, que nos faz sonhar e construir algo novo.

Nelson Almdeira/AFP Nelson Almdeira/AFP

Quais foram os ensinamentos mais importantes da sua história?

Tiveram muitos ensinamentos. Acho que o primeiro deles é saber chegar e sair dos espaços quando você é muito jovem e vai para prostituição ser jogada na rua e tem que aprender a lidar com tudo o que a rua traz, né, de risco, de periculosidade, de respeito as que vieram antes, de respeito a quem está ali na esquina. A ética também é um aprendizado para mim fundamental, ser ética, ser respeitosa, respeitar o espaço do outro, saber aonde está os meus limites, saber até onde eu possa avançar e onde eu preciso retroceder. A resiliência, saber viver e me adequar como uma camaleoa a diferentes espaços para que eu não seja engolida por eles, para que eu não seja morta por estar naquele lugar é um aprendizado também caro para mim. A escuta aberta para sempre aprender, nós estamos em constante desconstrução, nós nunca estaremos prontas e descontruídas o suficiente. São coisas que a vida dura árdua e difícil me fizeram aprender para que eu sobrevivesse, para que eu resistisse e para que eu absorvesse tudo aquilo que havia de melhor, mesmo estando nos piores dos espaços.

Aproveitando esse gancho: a Erika no presente se espelha muito na do passado?

A Erika do presente se reverencia à que foi no passado, quebrando muitas cicatrizes e castelos de gelo que o passado, por ser muito duro, construiu dentro dela e fez com que ela, às vezes, se fechasse, porque sempre precisou estar armada. Ela olha, sim, para a Erika de ontem e constrói a Erika de hoje, que vai construir a Erika de amanhã, que são Erikas completamente diferentes. Estamos em transição o tempo inteiro, e a transição não é só mudar um cabelo ou vestir uma roupa, a transição é um processo intrínseco a todos os indivíduos, não é uma particularidade apenas de pessoas transvestigênere. É uma Érika que olha para a outra para consolá-la, abraçar-lá, carregar no colo, porque teve uma vida muito mais difícil. Mas também para compreender o que os processos e os passos daquela outra Erika ensinaram e trouxeram para esta nova. É uma Érika que está em choque o tempo inteiro, mas que também está em consonância de construção o tempo inteiro. É um paradoxo muito louco.

E a Erika do futuro, que está construindo esse futuro? Você acha que o seu sorriso será fruto do que?

Ai, mana, acho que o meu sorriso será fruto de uma grande transformação. Penso em construir coletivamente legados, em abrir caminhos, penso em criar novas possibilidades, em mudar as estruturas. Eu penso em fazer uma alternância dos espaços, dos lugares e dos corpos, então eu vejo essa Erika do futuro abrindo uma fenda nos lugares, em toda a sociedade, para que muitas de nós possam passar, para que muitas de nós possam ocupar, para que muitas de nós possam nos ver em outros lugares que apenas as esquinas, apenas a prostituição, o anonimato, o cárcere e a desumanização.

Espero que esse sorriso mostre para a sociedade e para a nossa comunidade que existimos, estamos vivas, merecemos e precisamos de oportunidades para alcançar outros lugares e que nós podemos ser e fazer tudo aquilo que nós queremos, desde que não haja um sistema contra o nosso corpo, contra nossa vida, roubando a nossa humanidade e nos impedindo de exercer aquilo que temos de melhor e podemos contribuir socialmente.

Espero que esse sorriso abra caminho, modifique espaços, transforme e revolucione a sociedade para que cada vez mais nossos corpos sejam comuns e para que cada vez mais as desigualdades sejam combatidas e que legados sejam construídos e deixados na história por nós, mulheres, negras, trabalhadoras e transvestigêneres, que carregamos esse país nas costas.

Erika Hilton

Se você pudesse escolher uma palavra para descrever uma emoção, uma fase, um momento, você...

Sobrevivência é a palavra. Sempre trago que sou uma sobrevivente. Estar viva, propositiva para mim é algo fundamental e caro. Estive diante da morte muitas vezes, estar até aqui não foi uma coisa fácil, eu poderia não ter chegado até aqui inúmeras, inúmeras vezes. Estar viva para mim é uma honra. Eu celebro cada minuto da minha existência, da existência das minhas, porque sei que o tempo inteiro tem uma arma apontada para minha cabeça tentando me matar desde o momento em que eu sou expulsa da minha casa, desde o momento em que perco a minha humanidade. Estar viva, ser uma sobrevivente para incomodar e para dizer que eles não me tombaram. Apesar das inúmeras tentativas de me tombar, sigo de pé. A nossa vida é um ato político, estar viva é um ato de resistência. Espero poder celebrá-la mais, espero que muitas outras celebrem sempre a vida.

Agradeço demais o convite, a oportunidade do espaço, as trocas, me ponho à disposição sempre para que a gente troque, para que a gente paute, para que a gente se afete de formas positivas e para que a gente coletivamente possa construir. Muito obrigada, axé para nós.

Nelson Almeida/AFP Nelson Almeida/AFP

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