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Na São Paulo que faz 469 anos com recorde de pessoas em situação de rua, Padre Júlio luta por dignidade

João Paulo Guimarães Colaboração para Ecoa, em São Paulo (SP) João Paulo Guimarães

São 7h da manhã e o Centro Comunitário São Martinho de Lima, localizado na cidade de São Paulo, já abriu. A aglomeração em frente ao centro passa dos quinhentos "irmãos em situação de rua" esperando por atendimento. Padre Júlio Lancellotti vem chegando, empurrando seu carrinho e acompanhado de uma equipe que o assiste.

A maior cidade da América do Sul completa, neste dia 25, 469 anos. A capital paulista tem hoje pelo menos 48,6 mil pessoas vivendo em situação de rua. Um aumento de 10% quando comparado aos 44,3 mil de 2019. Os dados são do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua da UFMG, que contabiliza pessoas em situação de rua registradas no Cadastro Único (CadÚnico).

São mais pessoas em situação de rua do que todos os habitantes da cidade de Promissão, no interior do estado de São Paulo, juntos. Em meio a esses dados sem rosto, o trabalho do Padre Júlio com os irmãos de rua é um alento.

João Paulo Guimarães
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Paulistano nascido no hospital São José do Brás, Padre Júlio Lancellotti é pedagogo e coordenador da Pastoral do Povo de Rua de São Paulo. Referência na luta pelos direitos humanos já atuou com menores infratores e crianças com HIV.

Júlio desempenha esse trabalho há 40 anos, muitos destes no bairro da Mooca, zona leste, onde serve café da manhã e distribui roupas e livros para uma média semanal de 900 pessoas através de doações.

Recebeu em 2020 uma ligação do Papa Francisco, que pediu que Júlio Lancellotti continuasse o trabalho nas ruas e na assistência aos irmãos. Também popularizou o termo "aporofobia" e, combatendo a arquitetura hostil nas ruas de todo o Brasil, batizou uma lei de autoria do senador Fabiano Contarato (PT).

João Paulo Guimarães João Paulo Guimarães

É possível encontrar, em São Paulo, pessoas em situação de rua vindas de todo o Brasil. É o caso de seu Bonitinho, de 51 anos, natural do Rio Grande do Norte, mais especificamente da cidade de São Miguel.

"Padre Júlio é uma benção de Deus. Ele me ajuda demais com roupas e comida. Eu trabalho puxando carroça há 18 anos. Ontem ele conseguiu pra mim um quartinho com cama e banheiro e é graças a isso que eu tô saudável e feliz. Tem dia que eu como e dia que não", diz Bonitinho.

Os dados recentes de pessoas vivendo em situação de rua no Brasil são confusos e antigos, nem Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e nem IBGE têm dados sólidos que corroboram a necessidade de implantação de políticas públicas e sociais para a população que, de acordo com estes órgãos, chega ao número aproximado de 281.472 pessoas. Segundo o Ipea, em uma década, de 2012 a 2022, o crescimento desse segmento da população foi de 211%.

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Lutamos contra a aporofobia [o ódio aos pobres] e essa arquitetura hostil, que vemos por todo o país além do racismo e da transfobia. Comer é conviver. Partilhar e conviver. A dor do nosso irmão é nossa dor. A fome do irmão é a nossa fome. Eu sempre digo que nós não devemos apenas dar de comer para o irmão. É preciso comer com o irmão e escutar suas histórias para entender sua dor. Nós só seremos felizes e plenamente humanos quando ninguém mais tiver fome.

Padre Júlio Lancellotti

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Padre Júlio relata sofrer perseguições diárias de bolsonaristas (até mesmo de padres) de todo o Brasil, moradores do bairro da Mooca e de movimentos políticos. Ameaças que variam entre violência física e insultos.

Para ele isso é algo comum. E avisa: "Logo logo vou fazer um Armazém do Campo aqui na paróquia e vou fincar uma bandeira do MST no meio da Mooca. Aí você vai ver o que é perseguição".

Pergunto a ele sobre a teologia nacionalista.

"Jesus era contra o nacionalismo. Quando ele fala do sírio e da mulher de Sarepta quando ele dá o pão pra ela, eles expulsam Jesus da sinagoga e querem matá-lo. Ele recita um texto na sinagoga e tem uma parte no texto que eles, os nacionalistas gostam, que fala de vingança e ódio, mas Jesus pula essa parte então eles se revoltam, agarram Jesus e tentam jogá-lo do precipício. Tudo isso porque ele contesta a teologia nacionalista. Entende como isso está ligado na nossa história atual?"

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São muitos os problemas dos irmãos que procuram a assistência da Paróquia de São Miguel Arcanjo: de falta de moradia ou de dinheiro para uma simples passagem de ônibus até casos mais graves, como assédio e criminalização.

Vitor Bruno tem 38 anos e faz parte de uma estatística que engloba 21,9% dessa população que decidiu abandonar a moradia por desavenças com familiares. Ele conta ter saído de casa após brigas com o irmão alcoólatra.

Vitor mora no Albergue Arsenal da Esperança, o maior da América Latina, com mais de 1.500 pessoas. Quando o encontrei, ele estava lendo o livro "Várias Histórias'', uma coletânea de contos de Machado de Assis. Vitor diz que gosta de ler, principalmente os autores brasileiros.

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Escutamos no centro comunitário uma flauta. A canção "Carinhoso", de João de Barro e Pixinguinha. Padre Júlio escutava sorrindo a música tocada por Ubiratan Freire, de 69 anos.

Ubiratan é pernambucano de Jaboatão dos Guararapes. Artista plástico, músico e escultor, ele estuda música há 45 anos e está em situação de rua desde 2007.

"Eu gosto de músicas que se encaixam mais tanto na harmonia quanto na poesia além do conhecimento técnico", diz o artista.

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O preconceito é uma característica da aporofobia. Ana Raquel, de 35 anos, e o esposo Anderson da Silva Santos, de 36 anos, perderam a guarda de suas três filhas.

As meninas estudavam em uma escola em Piracicaba. A diretora da creche fez uma falsa denuncia de pedofilia na tentativa de criminalizá-lo. Um dia Anderson foi buscar suas filhas e a Guarda Civil Metropolitana o aguardava. A tentativa de prisão aconteceu sem testemunhas de qualquer crime ou prova. Mesmo com a liberação de Anderson, as meninas foram encaminhadas para um abrigo.

"Fui buscar minhas meninas e a diretora disse que não ia entregar elas pra mim e que minha esposa tinha que buscar e assinar um documento concordando que eu tinha cometido abusos contra elas. Eu não tenho passagem pela polícia e sempre fui um pai dedicado. Eu amo nossas meninas e pra nós isso foi um choque e desespero que eu não desejo pra mais ninguém. Tivemos que sair de nossa casa e morar em um abrigo aqui em SP. Esperamos dois meses pelo corpo de delito, que não deu em absolutamente nada", diz Anderson.

"A diretora me deu um documento para assinar. Ela disse que se eu não assinasse, ela ia assinar. Tiraram as nossas meninas de nós e hoje ainda estamos nessa situação, lutando pra ter nossas meninas de volta, mas graças ao Padre Júlio a gente tem onde morar e ele apresentou a advogada que agora está na frente de tudo. Agora o Anderson já pode ver as meninas. Passamos o Natal e Ano Novo com elas, mas ainda estamos lutando para a juíza devolver as nossas meninas e tirar elas daquele lugar", diz Ana Raquel.

No último dia 27 de dezembro, Padre Júlio completou 74 anos e ganhou de presente a lei que proíbe a arquitetura hostil em espaços públicos. Uma lei que não só engloba as populações de rua, mas todo cidadão. Foi preciso lutar.

Luta pacífica e no campo das ideias, a vitória de Padre Júlio é uma vitória da democracia. Para o padre, que dedica a vida na defesa dos marginalizados, democratizar os espaços públicos de São Paulo e de todas cidades do país é só o começo.

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