Pop peruano

Inspirado no K-pop, peruano cria o Q'pop e resgata idioma antigo usado pelos Incas que já foi proibido no país

Juliana Faddul Colaboração para o UOL, de São Paulo (SP)

No clipe de "Imaynata", o vocalista aparece vestindo peças de couro e um par de coturno. Atrás dele, bailarinos fazem coreografias com movimentos curtos e cadenciados. À primeira vista, parece um clássico clipe de K-pop, o pop coreano. Mas é quando chega o refrão que temos a atenção totalmente roubada:

Suyaykusun
Purikusun
Intihuatana chiskama atiyni takiyni

Afinal, que língua é essa que ele está cantando? A resposta, ao menos para os brasileiros, não é tão óbvia: é o quéchua, idioma indígena de povos que vivem no Peru, Bolívia, Equador, Chile, Colômbia e Argentina.

Esperemos
Caminhemos
Posso cantar até o sol parar de brilhar

"O K-pop é uma indústria de entretenimento que acabou embalando pessoas que não necessariamente moram na Coréia. As pessoas sentem, as pessoas dançam, as pessoas buscam informações sobre", diz Lenin Tamayo, de 23 anos, considerado o "pai" do Q'pop e estrela do videoclipe de "Imaynata".

"Acontece a mesma coisa com o quéchua. Quero que minha música seja exportada para o mundo? Sim, mas que seja vista também a cosmovisão andina, essa conexão com a natureza, as pessoas, a vida", completa.

Influências do Q'pop

Nascido na cidade de Comas, perto de Lima, capital do Peru, Tamayo sempre teve a música muito presente em sua vida — ele é filho da cantora de música popular andina Yolanda Pinares.

"Sou filho único de mãe solo. Eu e minha mãe usamos o quéchua para conversar e fazer piadas internas", conta.

Artistas como o grupo peruano Alborada, a argentina Mercedes Sosa e os bolivianos Kjarkas sempre estiveram presentes na casa da família Pinares-Tamayo.

Mas, quando se reconheceu como artista, Lenin quis incluir elementos que também fizeram parte de sua história e de sua geração, como temas de abertura de desenhos animados até a cantora espanhola Rosalía - e, claro, o fenômeno do k-pop, o BTS.

Lenin - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

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"A população quéchua não fica isolada sem contato com referências internacionais. Nós também somos muito afetados e também consumimos muito deste material", explica fazendo um paralelo com a Coréia, que também bebeu de fontes de música norte-americana para criar os grupos de k-pop.

No entanto, ele reconhece as dificuldades de cada país. Hoje, ele grava suas músicas em um estúdio pequeno, de 20 metros quadrados que fica dentro de um telhado em Comas, bairro ao norte de Lima.

"A Coreia é um país muito mais estável, que não precisa de tanta validação como a comunidade quéchua, que está dividida por diversos países na América Latina", diz.

Proibição do idioma

Segundo levantamento feito pelas Nações Unidas em 2019, cerca de 12 milhões de pessoas têm o quéchua como seu idioma nativo - uma diferença brutal se considerarmos os 79,3 milhões de pessoas que têm o coreano como língua materna, por exemplo.

Estima-se que o quecha seja uma lingua de cinco mil anos. Emilania Sousa Cabral, mestra em Letras pela Universidade Federal do Acre, conta em seu artigo "O resgate de uma língua" que este idioma foi um dos maiores êxitos que os Incas tiveram para unificar os povos andinos, ao declarar o quéchua a língua oficial desse Império.

Mas, com a chegada dos espanhóis nas Américas, ela também foi utilizada por estes missionários europeus para evangelizar os mesmos povos andinos — o que facilitou a expansão do domínio espanhol na região.

O uso do quéchua, no entanto, foi proibido após 1780. Naquele ano, José Gabriel Condorcanqui, um nobre mestiço do Peru, se declarou descendente de Túpac Amaru, antigo líder Inca que resistiu ao início da colonização espanhola no continente americano.

José virou, então, Túpac Amaru II e iniciou uma grandiosa revolta indígena, que reuniu também escravizados e colonos pobres, contra a exploração e o domínio europeu.

O movimento causou uma grande pressão e ameaça aos colonizadores, que reagiram reprimindo fortemente a revolta. Túpac Amaru II acabou preso, com a língua cortada e morto posteriormente.

Por esse motivo, o quéchua falado pelo líder peruano foi proibido. Com medo e vergonha, os falantes pararam de passá-lo para as futuras gerações.

Este cenário só começa a mudar em 1975, quando o general Juan Velasco Alvarado reconhece o quéchua como idioma oficial do Peru.

Preconceito além do idioma

"Além da questão do idioma, meu trabalho também encontra outros tipos de implicâncias, tanto na perspectiva macro como na micro", explica o artista que também é bacharel em psicologia.

"Há um preconceito com artistas jovens e de como estamos nos desenvolvendo. Temos cantores cantando e dançando desde os anos 80, mas trabalhos desse tipo ainda causam espanto por aqui. O motivo? Machismo. Ainda é muito forte aqui na América Latina."

Com aparência andrógina, ele mistura roupas dos anos 80, 90 e 00 (como boinas, munhequeiras e camisetas bufantes) com peças de artesanato andino, com cores vibrantes, tricô e pompons.

Minha roupa abraça essa mensagem porque não sigo o padrão de beleza que esperam. Isso acaba se mostrando vários problemas da sociedade latino-americana. O padrão de beleza internacional é atingível a nós, andinos? Se não é, por que não é? Entende como apenas este tema acaba tocando em muitos problemas sociais?

O grande chamariz da carreira de Lenin não está no idioma ou nas roupas ou na música pop. Esta justamente em capturar algo que poderia colonizar e uniformizar a cultura e adaptá-la como forma de resistência.

Divulgação Divulgação

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