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Tony Marlon

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Vencedor no 'É Tudo Verdade', filme polonês convoca nossa atenção ao outro

Cena do documentário "O Filme da Sacada"  - Divulgação
Cena do documentário 'O Filme da Sacada' Imagem: Divulgação

15/04/2022 06h00

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Gosto dessa síntese que escutei em algum lugar, infelizmente perdi onde e de quem foi: precisamos desmistificar a noção de que a história é produto de indivíduos excepcionais. Ela se constrói num discurso da ministra de Estado no coração do poder. Também pelas mãos do velho agricultor que sobe sua plantadeira, no interior e norte de Minas Gerais.

A história vem de todos os lados. Quem se sentou nas cadeiras do poder é quem escolheu qual queria guardado e qual seria apagado dos livros oficiais. Lembrei-me da pesquisadora Lia Vainer Schucman: "O que chamamos de História Geral, por exemplo, deveria ser chamada de história branco-europeia". Mas isso é uma outra conversa.

Um dos vencedores do maior festival de documentários da América Latina, a produção polonesa "O Filme da Sacada" é um convite poderoso ao exercício de falar com intenção, escutar com atenção. Eu não sou crítico de cinema, não encontro os erros que acham. Aqui, escrevo sobre o que ficou forte em mim depois de vê-lo: todas as pessoas são interessantes. Todas as pessoas acontecem histórias ainda mais interessantes.

Por dois anos e meio, o diretor Paweł Łoziński montou uma câmera na sacada de sua casa. Dali, fez perguntas a quem passasse: qual é o sentido da vida? Me conte mais sobre você? Oi, está indo para onde? Aceita ser minha protagonista?

Os primeiros minutos mostram o que uma cena como essa poderia render em qualquer lugar do mundo, eu imagino: estranhamentos e muitos nãos. A uma certa altura, o filme começa a costurar as histórias de quem vai nos acompanhar nessa experiência.

Uma senhora idosa solitária que luta contra as folhas no quintal e na rua, estação após estação; outra de poucas palavras, ótimas tiradas e uma saudade enorme do grande amor de sua vida, que já se foi. O homem que acabou de sair do sistema prisional em busca de algum motivo para que voltar para lá não seja a sua melhor opção na vida. Eu estou tentando encontrar alguma perspectiva aqui fora, revela em algum momento.

Esses personagens vão e voltam durante 1 hora e 40. Vemos suas histórias avançarem no tempo. Mas existem muitos outros que se relacionam com o diretor e a câmera de maneira pontual, igualmente sensível e reveladora. Feito um homem que ainda se recuperava da perda de seu companheiro de uma vida toda, voz triste e calma. Depois de algumas respostas, diz: quando perguntavam, nós falávamos que éramos irmãos.

Não tem sentido um mundo em que alguém precise esconder o motivo do seu amor.

O que Paweł fez não é necessariamente original, soube que outros filmes partem de ideias parecidas. Mas isso pouco me importa. O que me importa, mesmo, é o poder que este filme tem de afetar quem o assiste. É o poder que este filme tem de convocar o nosso interesse pela humanidade de quem está ao nosso lado. O que me interessa, mesmo, é saber o que muda no mundo quando a gente tira um pouco os olhos da tela do celular e faz perguntas que deixam espaço e tempo para o outro existir.

Isso tudo me lembra o imortal Gilberto Gil no Conversa com o Bial, em 2017. Quando Neusa Carvalho, de 87 anos, diz que sua vida havia sido menos "rica" que a dele, 12 anos mais novo, Gil responde assim: "Não sei. A riqueza de uma vida, por mais silenciosa que ela tenha sido, por menos barulho que ela tenha feito, por mais distante que ela tenha vivido das multidões, tem valor inestimável. Uma vida é uma vida. E as vidas, neste sentido, todas, tem o mesmo valor". Todas.

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