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Tony Marlon

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Como os festivais de cinema contam os brasis que o Brasil pouco conhece

Cena da obra "Neguinho", do diretor Marçal Vianna - Reprodução
Cena da obra 'Neguinho', do diretor Marçal Vianna Imagem: Reprodução

10/02/2022 06h00

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Não é nos streamings, mas nos festivais de cinema, em especial os de curtas-metragens, que tenho encontrado os filmes que mais me estimulam a pensar e interpretar o Brasil de hoje. Não tem uma vez que eu não saia emocionado e esperançoso de que nosso futuro será melhor que hoje. Apesar de tudo.

Festival é o nome que se dá a uma mostra organizada de filmes, que pode ser temática ou não, e que geralmente acontece numa mesma cidade misturando exibição e mesas de estudo e debate. Para participar, quem fez o filme precisa inscrevê-lo, e ele pode ser selecionado ou não para a programação. Como exemplo, vale contar o que acontece desde ontem (9) nas favelas e periferias da zona sul de São Paulo.

O Perifericu - Festival Internacional de Cinema e Cultura de Quebrada é uma criação da Maloka Filmes, uma produtora criativa audiovisual TLGB+ criada por jovens periféricos da cidade. Até o dia 13, acontecem de maneira híbrida apresentações musicais, intervenções artísticas, mostra de filmes e até um slam em favelas da região. Tudo busca valorizar as diferentes manifestações e processos artísticos da população LGBTQIA+ periférica. Um audiovisual mais negro, mais indígena, menos sudeste centrado. Mais a pluralidade que somos.

Perceba, os muitos brasis se encontram é aqui, longe das salas de cinema a que você e eu, geralmente, vamos. É que por lá pouca coisa mudou nas últimas décadas quando o assunto é quem escreve, quem dirige ou quem protagoniza os longas-metragens. E isso influencia, obviamente, no que você e eu assistimos. Em quem aparece ali e como aparece.

Bastante conhecida, uma pesquisa da ANCINE de 2016, mostrou que homens negros lideraram apenas 2,1% das produções e nenhum, isso mesmo, nenhum filme comercial foi dirigido ou roteirizado por uma mulher negra naquele ano. No Brasil de 2022 existem pessoas que acham um absurdo que exista quem problematize números assustadoramente reveladores como este. Freud explica.

Escritor e historiador, Luiz Antonio Simas lançou ao lado de Luiz Rufino e Rafael Haddock Lobo o livro "Arruaças: uma filosofia popular brasileira". Recomendo. Em sua interpretação, existe o Brasil, representado pelo status quo e pelas instituições tomadas pelas mesmas pessoas de sempre, e do outro lado existem os vários brasis, que navegam pelas brechas dessa institucionalidade. Sem romantizações. O primeiro, ele qualifica como um projeto bem-sucedido de exclusão, enquanto o símbolo do segundo são as ruas, becos e vielas. Este conceito me economizou bastante tempo em explicações: o cinema do shopping é o Brasil, o Perifericu e tantos outros festivais potentes, os brasis.

Tem alguns dias, eu tive a sorte de me encontrar com três obras que ajudam a ilustrar o que quero dizer. Com 13 minutos, Seremos Ouvidas é uma produção que faz pensar, e muito, enquanto entrega uma experiência cinematográfica que emociona e inspira conversas. No filme, a diretora Larissa Nepomuceno entrevista três mulheres surdas de realidades completamente diferentes para entender como é existir em uma sociedade sexista e ouvinte. Por exemplo, as políticas públicas de proteção às mulheres consideram que nem todas conseguem acessar o Disk Denúncia? Gabriela, Celma e Klicia me fizeram sair com essa e muitas outras perguntas. E fará você também.

Assisti a outros dois filmes no Curta na Serra, uma mostra de cinema em Bezerros, Pernambuco, que também mexeram muito comigo. O primeiro tem apenas 5 minutos, chama-se Gilson. É uma animação documental que brilhantemente desenha como se dão as desigualdades e a concentração de renda num país feito o Brasil, a partir da história de um entregador de delivery que precisa trabalhar durante a pandemia: o Gilson. Vale cada segundo. A direção é da Vitória Di Bonesso.

O último dessa pequena lista que pretende inspirar você que me lê a olhar com mais carinho e cuidado para os festivais de cinema vem do diretor Marçal Vianna. Neguinho é baseado na história real de Jéssica, estudante de publicidade e mãe solo de Zeca. Um dia, ela é chamada por Bárbara, a professora da criança, para uma conversa séria sobre o futuro do filho, que já não é tão alegre e comunicativo como era antes. Zeca é bolsista numa escola de elite na Gávea. Assista, viu.

Feito esses, existem muitos filmes potentes demais para não serem contados aos quatro ventos que existem. E esses festivais, de todos os tamanhos e temas, são as casas dessas produções que nos dão alguma esperança de que os brasis se verão, cada vez mais, em todos os lugares da vida. Em especial na telona, em todas elas. Veja onde estão rolando festivais aqui.