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Tony Marlon

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O trabalho da minha vida

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Imagem: iStock

10/08/2021 06h00

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Um dia depois de vencer os três meses de experiência, eu corri a uma loja perto de casa e parcelei o computador que precisava tanto em 18 vezes sem juros no crediário. Um ano e meio depois, era domingo à tarde quando paguei a última prestação, e pensei que amanhã pediria demissão, como de fato eu pedi.

Lembro até hoje da expressão das pessoas que acolheram aquela conversa na salinha fechada do Recursos Humanos: você vai fazer o quê da sua vida agora, garoto?

Acho que não passava do meio-dia quando subi num ônibus vazio para voltar para casa. Era estranho pegar um ônibus vazio, era estranho ver minha casa de dia numa segunda-feira. A cabeça fazendo mil planos e o meu peito mais aberto que o mar da Bahia, como diz o poeta.

Pedir demissão era a decisão mais adulta que eu havia tomado até ali e, sim, existia um medo enorme de ter feito um movimento antes do tempo. Mas eu escutei uma voz.

Desde criança meus sonhos eram dois: estudar jornalismo e trabalhar em alguma rádio, nas madrugadas, misturando música e boas conversas para pessoas, feito meu pai, porteiro, que vira e mexe só pontava na curva lá embaixo da rua quando eu estava saindo para estudar. Uma coisa ligada a outra, você sabe.

Trabalhar no telemarketing, parcelar um computador para a faculdade em 18 meses, pedir demissão depois de pagar a última prestação foi o meu jeito de não me perder deste caminho.

Nas semanas seguintes o que não faltaram foram sonhos e e-mails pedindo uma chance. Imagine, sem as redes sociais de hoje, o que sobrava era o telefone fixo e endereços de e-mail. Para o primeiro eu era tímido demais, para o segundo só dava para entrar depois de meia noite para saber respostas. Internet discada google pesquisar.

Mas existia uma voz. E foi ela quem me encorajou todas as vezes a mandar sugestões de entrevistas para duas ou três pessoas que, sem querer, eu consegui os contatos. Coitada delas. Todos os dias, era de madrugada, e eu lá escrevendo assim: caro amigo, hoje eu tive uma ideia de que acho que vai gostar.

Nem era bem uma ideia, nem era bem um amigo. Ela ou ele nem me conheciam.

Foi essa mesma voz que me disse que estava certo, ao lado de amigos irmãos até hoje, que criássemos alguns vários programas em rádios comunitárias para colocar em prática o que a sala de aula nos ensinava. A gente rodando as periferias de São Paulo, músicas e vinhetas num pendrive. Eu confundindo o nome do entrevistado com alguém que havia morrido 5 anos antes.

Eu não sei qual é a sua história, mas todos e todas nós temos uma para contar. É contando que a gente dá profundidade, textura, cheiro para a nossa jornada. Contar história é humanizar. É por isso que me apaixona tanto que todo mundo possa ter um palco para ser escutada. Que ali, falando, a ficha do mundo todo cai diante dos olhos: especiais somos todos e todas nós por aqui. Ninguém mais, ninguém menos.

Sabendo que a gente só conecta pontos olhando para trás, como diz o outro, eu me peguei convidado a pensar sobre o trabalho na minha vida, por essas semanas. Das escolhas que precisei fazer para construir este caminho até hoje, não que ele seja melhor do que nenhum outro. De como foi importante sair daquele trabalho, de pessoas que cuidavam de mim como cuidavam de um filho, dizendo o que disse: vou sair porque preciso que o meu sonho tem mais chances de me encontrar, lá fora. E fui.

A gente não sabe que está fazendo o certo, só olhando para trás muito tempo depois é que pode deduzir alguma coisa. Mas é importante o silêncio que precede o sussurro, a tal voz que ficava falando comigo lá atrás. Que conversa todos os dias com todos e todas nós, é só escutar de olhos bem fechados.

Outro dia, dando entrevista para o Visionários do Quebrada, um documentário que você precisa assistir, eu disse que o que me interessa mesmo é que lá, ao fim de tudo, a vida sinta orgulho de ter passado por mim. E é isso.

E foi muito por isso que fui me virando educador, que trabalho com o que trabalho. É um sonho que nem sabia que era sonho lá atrás, de que cada vez mais pessoas possam escutar essa tal voz, e saber o que fazer com ela depois. Sem o ônibus vazio daquela segunda, os e-mails madrugada adentro. As idas em todas aquelas rádios eu nunca construiria quem eu estou hoje.

Que a gente tenha todos os dias mais uma geração absolutamente comprometida com a vida que veio realizar aqui, e mais que isso. Que consigamos construir um país que acolha, respeite e dê condições iguais para que todas e todos possam construir seu caminho. Sonhar é direito humano.