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Tony Marlon

A parte que cabe à imprensa no estereótipo e na violência contra favelas

Complexo da Maré, no Rio de Janeiro  - Tony Marlon
Complexo da Maré, no Rio de Janeiro Imagem: Tony Marlon

Tony Marlon

28/08/2020 04h00

Eu não nasci no Campo Limpo, periferia da zona sul de São Paulo. Mas foi o Campo Limpo que me deu tudo que eu precisava para estar aqui, agora. Não falo de escrever no UOL, em ECOA. Falo sobre a vida, mesmo. Meu bairro, e todas as favelas e periferias por onde eu ando, me ensinam como eu gostaria de passar pela vida.

Foram elas que construíram meu olhar sobre o mundo. Que me deram os ídolos que tenho, a multidão de amigos e amigas a quem eu confiaria minha vida. Foram nelas que encontrei as aulas de sociologia, de história, que a escola regular não conseguiu nos oferecer. Sem Dina Di, Dexter, Emicida ou a Dona Vilani, eu não saberia metade do que eu sei. E ainda faltam muitos.

E, especialmente, são elas, as periferias e favelas, que me lembram o que é prioridade, e quem é a prioridade, diariamente, no meu trabalho.

Mas eu não sabia que os adultos organizavam o mundo com estes marcadores: periferia, favela, centro. Quando se tem 12 anos, todo lugar é uma possibilidade. E tudo é a cidade, a qual todo mundo tem direito. A gente anda assim pelo mundo.

Até que chega um dia que você precisa procurar trabalho e farão perguntas feito essas: e você mora onde? Você é envolvido com coisa errada? Eu posso confiar em te contratar? Você vai me dar dor de cabeça?

A pessoa que faz essas perguntas, muitas vezes, nunca pisou onde eu moro. Onde a maioria da população, mora. Leu em algum lugar que qualquer canto que se pareça com o que assistiu outro dia é, automaticamente, um risco para a sociedade. Logo, ela deduz, que eu sou um risco para aquela empresa. Por isso as perguntas que aquela pessoa fará para mim não fará para todos os candidatos do dia. Isso tem um nome: estereótipo.

A pessoa atrás da cadeira, na minha frente, na nossa frente, acredita nisso pois todos os dias, por horas e horas, apresentadores de TV dizem coisas à exaustão, com seus julgamentos rápidos de vidas inteiras a partir de uma reportagem de pouco mais de dois minutos. Opinam sentenças.

O futuro patrão acredita nisso, pois leu em seu jornal ou portal favorito, coisas como o Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, mesmo com 140 mil moradoras e moradores lutando para fazer avançar suas vidas em meio à maior crise de saúde do século, foi contado à sociedade com este perigoso reducionismo: "Bunker de bandidos". Isso aconteceu essa semana, de novo.

Pode parecer apenas mais um título para alguém, mas é um grande passo para uma imaginação pública repleta de estereótipos. E para reforçar preconceitos. E naturalizar violências. Que vão desaguar, em algum momento, na autorização dos mais diferentes tipos de violência contra quem mora em periferias e favelas.

Quando você faz generalizações violentas como essa, uma multidão de pessoas será recebida com desconfiança na próxima entrevista de emprego. Você vai ajudá-las a colocar comida na mesa da família?

Quando você diz que o lar de muitos é um "bunker de bandidos" cria-se uma ideia de que é preciso acabar com aquele lugar, e tudo que couber nele, pois só assim a sociedade estará a salva. Você vai restaurar a vida de um filho ou filha quando uma mãe estiver chorando por sua partida por ser, simplesmente, alguém que mora onde mora?

Outra: você tem ajudado a construir políticas de segurança pública que não criminalizam a pobreza, mas que pensam holisticamente os problemas e as soluções para as favelas e periferias?

Talvez você me diga que não é papel da imprensa apoiar quem mora por aqui a conseguir trabalho. Que menos ainda é seu papel, a construção de políticas públicas para a cidade. Verdade, isso é com o Estado. Mas posso afirmar, com toda certeza, que nunca será papel da imprensa, também, e especialmente, construir ou reforçar discursos que naturalizam ou autorizam violências futuras. Tipo este de chamar um lugar com 140 mil pessoas de "Bunker de Bandidos".

Não se pode perder de vista o que acontece na vida prática da população de um território que, sistematicamente, sofre reducionismos e simplificações como essa. As favelas e periferias são bem mais complexas. E potentes.

Durante toda a quinta-feira, moradoras, moradores e organizações sociais usaram as redes sociais para contar ao mundo o que dá vida e movimento ao Complexo da Maré. Para acompanhar, clique aqui.

Mariana Belmont, colunista de ECOA, já escreveu sobre como tem brotado nas periferias e favelas do país inúmeras iniciativas de comunicação. Entre os motivos e as motivações, um entendimento que se faz urgente que a história seja contada em primeira pessoa, pelos próprios moradores e moradoras destes lugares. Não é por acaso. Contra os reducionismos e as generalizações, novas subjetividades e narrativas se fazem cada vez mais necessárias. Ocupar espaços de grande escuta como este, também.

Nunca é apenas uma reportagem. É sobre vidas e futuros. Por isso, máscara, álcool em gel e responsabilidade seguem não fazendo mal a ninguém.

PS: A foto que ilustra essa coluna é do autor, na falta de imagens que evidenciam a potência das vidas no Complexo da Maré. Todas as encontradas tinham recortes de operação policial, violência ou pobreza. As periferias e favelas são bem mais que isso. Bem mais.