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Rodrigo Hübner Mendes

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Pé na tábua, e seja o que Deus quiser

Getty Images
Imagem: Getty Images

21/01/2022 06h00

Durante as férias, viajei ao litoral catarinense para participar de um tradicional encontro de veraneio da família de minha namorada. Estava ciente do intenso tráfego nesse período, mas optei por ir de carro para ter mais mobilidade e relembrar uma divertida viagem que havia feito há 27 anos para Itapema.

A certa altura na BR-116, estávamos no limite permitido, quando um caminhão colou na nossa traseira, fazendo-me lembrar do filme "Encurralado", de Steven Spielberg. Às tantas, o sujeito achou um espaço pela direita, nos ultrapassou e jogou a jamanta mamute sobre nosso carro, a ponto de quase gerar um acidente sério.

Na volta a São Paulo, ouvi uma ótima entrevista na Trip FM, do meu querido amigo Paulo Lima, em que ele conversava com o antropólogo Roberto DaMatta. Chamou-me a atenção o momento em que a conversa abordou um livro de sua autoria, chamado "Fé em Deus e Pé na Tábua - ou como e por que o trânsito enlouquece no Brasil". A publicação baseia-se em um estudo cuidadoso, feito no estado do Espírito Santo, em que foram entrevistados dezenas de motoristas da região da Grande Vitória. DaMatta traça o perfil típico do brasileiro por trás de um volante. O que encontramos ali é um retrato de um não-cidadão. Um ser autoritário e prepotente, que considera o espaço público como seu, o outro como um intruso e o seu veículo como uma bolha que o coloca acima de qualquer regra social de respeito. O motorista brasileiro veste perfeitamente o figurino do "dono da rua", um clichê desconfortável, mas bastante definidor de um comportamento que traz o caos e a violência às nossas vias urbanas e estradas.

Não há solução simples para isso. Afinal, se um trabalhador como o motorista do caminhão que nos fechou considera corriqueiro cometer uma tentativa de assassinato, ao arremeter um veículo de duas ou três toneladas contra outro menor (ambos a mais de 100 km/h), parece necessário encararmos a cotidiana tarefa de nos observarmos, sermos críticos e assumirmos nossa parcela de responsabilidade na alteração de toda uma cultura de comportamento, que transcende o trânsito e permeia todas as camadas da nossa vida social.

Segundo o livro, isso dialoga com as distorções que vêm de uma herança escravagista, de uma realidade em que o outro, aquele que está fora de sua propriedade, é um ser humano de menor importância. Em que as pessoas modulam o tratamento dado a alguém de acordo com sua origem e classe social. Eu diria que reserva intersecções com o traço do malandro, aprofundado por referências como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, ainda notório em nosso cotidiano. Conforme ressaltei há algum tempo, vale sempre visitar a sabedoria do ditado popular "Se o malandro soubesse como é bom ser honesto, seria honesto só por malandragem". E deixar para Deus atividades mais nobres do que proteger quem se limita ao próprio umbigo e pisa na tábua, como uma criança sentada em um velocípede no quintal de casa.