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Julián Fuks

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Sobre outros carnavais - ou sobre aquilo que não há de morrer em nós

Getty Images/iStockphoto
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Colunista do UOL

13/02/2021 04h00

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O relato histórico é surpreendente. Eram ainda os primeiros anos da Peste Negra quando, em alguma ignorada cidade alemã, uns sujeitos anônimos se puseram a bater mãos e pés, a entoar cantos incertos, a dançar entusiasticamente. Outros se somaram a eles, camponeses, clérigos, oleiros, artesãos, cozinheiros, e a cidade já não foi suficiente para tanto movimento. A historiadora Barbara Ehrenreich é quem registra: em pouco tempo a multidão em desvario já atravessava toda a extensão do futuro país, chegando a cruzar a fronteira da Bélgica. Foi na antiga Aix-la-Chapelle que, em delírio pleno, perdendo todo o controle sobre os seus sentidos, a multidão foi ao chão num estado de exaustão coletiva, consumida até o limite por sua euforia, enfim satisfeita.

Leio essa história e não quero pensar na Peste, não quero me afligir com a profusão de contágios, não quero me fazer porta-voz do Imperial College e me pôr a calcular as possíveis vítimas. Prefiro em vez disso atentar ao que nascia ali, e em outros tantos lugares simultaneamente, no estranho surto de criatividade festiva que se deu na Europa nos séculos 13 e 14. Nascia ali, ou melhor, recriava-se ali algo já retratado fazia milênios em pinturas rupestres, algo encontrado nas mais distintas eras e entre os povos mais diversos, algo que alguém poderia reputar, com indubitável exagero, como a suma, universal e definitiva atividade humana: renascia ali o carnaval.

O carnaval morre e nasce a cada ano, morre e nasce a cada cortejo, a cada desfile, a cada bloco. Por isso fracassam os que querem acabar com ele, por isso falharam os reis e os papas que tentaram legislar contra ele, por isso se fizeram risíveis os déspotas que criticaram sua depravação em dourados tuítes. Goethe soube explicar bem por que nenhuma autoridade jamais é capaz de detê-lo, jamais consegue conter o que "realmente não é dado ao povo, e sim algo que o povo dá a si mesmo." O carnaval sofreu baixas, a repressão soube abatê-lo em alguns contextos - e por vezes, como hoje, houve razões justas para interrompê-lo. Mas o tempo é seu aliado, o tempo gosta de sua transgressão e sua insensatez, gosta de se fantasiar e sair pelas ruas dançando a esmo.

Precisei de tempo para entender o carnaval - mas entender não é a palavra certa, porque o carnaval repele o entendimento e prefere abraçar o ininteligível, fazendo-se perturbador e simpático num único gesto. Por vinte anos, vendo-o passar por ruas alheias com seus modos ruidosos e desordeiros, observando o carnaval dos outros, tudo o que senti - velho em meu corpo que nem bem encerrava a adolescência - foi uma aflição besta pela troca constante de gêneros e pelos rostos pintados em desenhos assimétricos. Precisei de vinte anos para parar de procurar sentido no carnaval e me incorporar a ele. Meu corpo, então, entendeu.

A cada ano, a cada sábado de carnaval, me sinto como o oleiro alemão concentrado no vaso que esculpe quando começa a ouvir os gritos, os cantos, os muitos pés dançantes que se aproximam. Por um instante ele hesita, tem um vaso a terminar, um prazo que se extingue, e não consegue enxergar o que ganhará ao se somar à turba festiva. Sente-se, ainda assim, inevitavelmente atraído, não pode conter um primeiro oscilar dos pés, contra a própria vontade vê que suas mãos batucam na argila deformando a valiosa peça. Ainda tímido ele se entrega à festa, ainda no controle das palavras e dos movimentos, mas em poucas horas não saberá o que responder quando alguém perguntar seu nome. Não por estar intoxicado ou consumido pela embriaguez, talvez só um pouco por isso; mas também por já não se ver tão semelhante a si mesmo, por já ser outro homem que não o artista circunspecto.

Aqui já sou outro, não mais o oleiro, já quero me tornar a pequena Clarice Lispector, seduzida pela súbita agitação que tomava ruas e praças do Recife, como se assim elas "enfim explicassem para que tinham sido feitas". Ela própria se deixava tomar pela mesma agitação, sentindo "como se as vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim", que era secreta nela, que era secreta em mim. "Carnaval era meu, meu", permitia-se afirmar a pequena Clarice, mesmo se mantendo quase sempre à parte, observadora da alegria alheia. Só um dia a menina se fantasiou, e esse dia lhe trouxe uma outra tristeza, mas também lhe deu uma alegria própria - nesse dia, por um instante, ela já não foi menina, foi uma flor toda feita de pétalas rosas.

A beleza do conto, a meu ver, está nessa oscilação de sentimentos que ele descreve. A beleza do carnaval talvez esteja na mesma oscilação, no encanto que emerge de algum lugar impreciso e chega a nos envolver por inteiro, para então se dissolver em desencanto e silêncio. Este é um ano desencantado, um ano em que a alegria é no máximo promessa. Ainda assim vou me permitir, no silêncio matinal deste sábado, alguma entrega à turba ruidosa dos meus, da minha mulher e das minhas filhas, talvez até trajando algum adereço, entoando com elas os nossos cantos costumeiros. Quem sabe por um átimo eu consiga me esquecer disso tudo e me esquecer de mim mesmo, quem sabe eu consiga ainda uma vez ser rosa, ser oleiro