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Julián Fuks

Lembremos do futuro: isso tudo vai passar

Getty Images
Imagem: Getty Images

Julián Fuks

Colunista do UOL

12/09/2020 04h00

Às vezes me lembro do futuro. Não o prevejo, não o adivinho, não o pressinto, não o imagino existente numa dimensão qualquer, inacessível, nada disso. Apenas lembro que os dias se sucederão em seu compasso lento, incessantes, incontíveis, até que despertemos todos num tempo presente que, no entanto, será o exato futuro deste instante em que escrevo. Às vezes me lembro da existência do futuro e basta isso para que sinta algum alívio, e para que consiga afirmar a mim mesmo, bobamente, como se fosse preciso: isso tudo vai passar.

E então penso nos amigos que não vejo há muitos meses, nas conversas que deixamos interrompidas, nos sorrisos inocentes que trocamos quando não sabíamos que aquela não era mais uma entre as triviais despedidas. Penso nos amigos fechados há tanto tempo entre paredes rijas, nos que vivem sozinhos e quase não têm visto mais que rostos descarnados, esboços de rostos fragmentados em pixels. Penso nos amigos que se sentem sozinhos, ou que mesmo em boa companhia me acompanham nesta sutil e crescente nostalgia, e quero lhes dizer, casualmente: nos vemos logo mais, falta pouco, não há de demorar tanto assim, isso tudo vai passar.

E então penso nos meus pais, encerrados também eles na casa da minha infância, na casa de suas décadas mais tranquilas, penso nos meus pais e no desânimo novo que tenho ouvido em suas palavras, no cansaço de suas vozes. Penso em seus olhos baços que vislumbro sem clareza quando os visito, cuidando os metros que nos separam, eles à porta da casa, eu na calçada de pedras disformes, desconfortável. Penso na intimidade que nenhum desses encontros insípidos jamais seria capaz de restaurar, e quero lhes dizer, decididamente: não tarda o tempo de cruzar essa porta, de repovoarmos a mesa de jantar, de nos tornarmos de novo a família distraída e vivaz, isso tudo vai passar.

E então penso que nada disso são dores, que nestes meses posso ter conhecido melhor a saudade, a impaciência, a ansiedade, mas não conheci melhor a dor, pois a dor não chegou a atravessar a soleira da minha casa. E penso nos que de fato sentiram a dor, nos que sofreram a inesperada perda, e no momento da perda sofreram a aguda distância, e decerto ainda agora sofrem a ausência. Penso nos círculos concêntricos de dor que se irradiam a partir dos 129.575 corpos, 129.575 mortos até este instante preciso em que escrevo. Penso em toda essa gente e não sei bem o que lhes dizer, sei que minhas palavras lhes valem pouco, mas avalio que nada custa afirmar mais uma vez, reconhecer mais uma vez, calidamente: não tarda o dia em que o grito se fará silêncio, e a ausência se fará lembrança, isso tudo vai passar.

E então penso em outra dor, em como os círculos concêntricos se difundem tanto que invadem uns aos outros, que começam a compor um único, amplo, desmedido sofrimento. Penso na dor de um combalido país, um país maltratado e envilecido por alguns homens soturnos, e quase chego a pensar que o futuro não será grande o bastante para redimir essa tristeza, para realizar tão imenso luto. Mas sim, é claro que sim, afirmo a mim mesmo com toda a certeza, o futuro renasce da mesma terra que se calcina, o futuro se eterniza como o povo em gerações sucessivas. E então me autorizo a dizer a todo o país, extravagantemente: não tarda o dia em que os solitários se farão multidão, não tarda o dia em que o silêncio se fará grito, e ensurdecerá esses homens terríveis, e calará seus velhos pensamentos, eles todos vão passar, todos eles, tudo isso, isso tudo vai passar.