Eduardo Carvalho

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Reportagem

'Meus pais não morreram porque o muro arrebentou', conta jornalista

A coluna de hoje não poderia ser sobre outro assunto que não a tragédia que acomete o estado do Rio Grande do Sul. Mas de uma maneira diferente: não sou eu quem escreve o texto a seguir, e sim alguém que está e vê, de perto, todo o impacto e destruição que vitimaram 100 pessoas até a finalização desta publicação.

A gaúcha Paola Possenato é jornalista e, nos últimos dias, viu a casa onde cresceu ser varrida pela água. Na figura dos pais, que só tiveram tempo de salvar Cristal - a cachorra da família - além do celular, o cenário de um caos submerso.

Se há motivos para sorrir? A vida que não se foi pela água, o que só não aconteceu pela proteção de um muro, que acidentalmente arrebentou com a força da enxurrada.

Leia abaixo o depoimento em primeira pessoa:

''É difícil falar, mas talvez a palavra que mais define o momento é devastação. Cresci em Relvado e vivi ali, talvez, os melhores momentos da minha vida ou pelo menos os mais marcantes, aqueles que me ensinaram a ser quem eu sou hoje. Aprendi os meus valores e também a ser forte. Chegar lá e encontrar uma cidade devastada, tomada por lama e água é de uma dor que rasga, sabe?

É dolorido. Ao mesmo tempo que a gente fica feliz em ver as pessoas se ajudando, pessoas que foram atingidas de uma forma mais singela, mais leve, ajudando quem perdeu tudo, quem precisa recomeçar do zero. Isso é de uma fortaleza, é de uma capacidade de se reerguer no meio do caos que é lindo. Chorei quando cheguei lá e não sabia o motivo. Primeiro, por gratidão em ver a comunidade se ajudando e doando. Num segundo momento, pela potência do que via aos meus olhos. É um misto de sentimentos.

Já passei por algumas outras situações de enchentes, mas nada, nada, nada, nenhuma se aproxima do que aconteceu agora. É uma sensação de você não conhecer mais um lugar que era o seu berço, onde você tem raízes, onde você praticamente sabia caminhar de olhos fechados.
É aprender a caminhar no pedregulho, é aprender a colocar o pé na lama, é uma sensação de impotência gigantesca e, ao mesmo tempo que a gente vê os municípios, as cidades, os governos municipais engajados, perceber uma falta de orientação, uma falta de preparo para esses acontecimentos naturais, para essas tragédias naturais. A gente percebe que não tem um plano traçado apesar do histórico de enchentes e de alagamentos no estado.

Recebi informação que muitas casas, por terem as portas e janelas arrebentadas pela força da água e pela força da lama, estão sendo saqueadas. Isso acabou comigo. Me faz perder a fé na humanidade. Não sei explicar o que faria se estivesse nesta situação de ver minha casa sendo saqueada por pessoas que estão tentando tirar algum proveito desta situação.

A casa em que minha família mora há 40 anos literalmente foi arrastada pela força da correnteza e o que sobrou são fragmentos, alguns pilares de pé. Era a casa dos meus avós maternos, que faleceram recentemente. Meus pais moravam naquela casa há mais de 30 anos. Você chegar onde era o pátio e encontrar as suas roupas no meio da lama, junto com utensílios domésticos e objetos particulares é muito triste.

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Foram três momentos da enchente. No primeiro momento entraram cerca de 10 centímetros de água na casa dos meus pais. Isso foi de madrugada. Meu pai acordou, acordou minha mãe, e eles começaram a tirar essa água e passaram o restante da madrugada nessa função. Próximo do meio-dia, no dia seguinte, ouviram pessoas buzinando na rua da nossa casa, como um sinal para avisar que a água estava subindo. Minha mãe conseguiu correr para o quarto dela para buscar Cristal, que é a nossa cachorra.

Quando ela abriu a porta da frente da casa, para tentar sair, a água já estava no nosso pátio. Aí, ela só teve tempo de pegar o celular e se dirigir à porta dos fundos. Quando eles conseguiram botar o pé na nossa varanda nos fundos, a água já estava na escada e eles não tinham como descer. Eles ficaram cerca de cinco horas na sacada esperando a água baixar e vendo as casas sendo levadas ao lado deles.

Eles não morreram pois o muro da piscina que a gente tinha arrebentou e, quando isso aconteceu, a água começou a ter espaço para ela descer e, então, começou a diminuir o volume d'água. Eles teriam morrido afogados. Meus pais desceram a escada, se dirigiram à rua atrás da nossa casa e conseguiram buscar abrigo no hotel da cidade, que fica a uma quadra de onde a gente morava. Eles estão no hotel apenas com a roupa do corpo e a nossa cachorra.

Infelizmente, muitos repasses e doações, que foram para governos, ainda não chegaram às pessoas que foram atingidas naquelas enchentes de setembro e novembro e, desta vez, as pessoas estão muito descrentes dos governos, o que é uma pena. A gente devia ter os governos como um berço, né, um lugar para a gente sentir segurança, acolhimento e a gente perceber que as pessoas procuram outras pessoas para abraçarem e para entenderem que elas estão seguras, que elas podem contar com uma ajuda.

Parece que a gente está um pouco calejado nessa enchente.

Após tudo isso, me sinto cansada ao ver tantas coisas. Mas, ainda assim, estou feliz. Meus pais estão vivos e, apesar da tristeza, do medo e do trauma, eles ainda encontram motivos para sorrir e valorizar que eles ainda estão aqui. A devastação ainda está acontecendo, mas as pessoas sorriem porque estão vivas.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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