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Meus 5 aprendizados com Sulwe, o livro da Lupita Nyong'o

Jess Gonçalves é gerente de projetos e fotógrafa nas horas vagas - Arquivo Pessoal
Jess Gonçalves é gerente de projetos e fotógrafa nas horas vagas Imagem: Arquivo Pessoal

*Jess Gonçalves

19/01/2020 04h00

"Jess, vamos marcar um almoço de final de ano, tenho um presente para te dar que é a sua cara". Foi assim que eu fui convidada por um amigo de longa data para um almoço celebrativo, pré-natal. Fui ansiosa pelo almoço, claro, mas eu queria saber o que era tanto a minha cara. E ele tirou da mochila um livro imponente, capa dura, com cores de crepúsculo estrelado, brilhante, e uma ilustração de uma menininha negra que nos olha nos olhos, e a mãozinha estirada nos convida a tocá-la e seguir com ela por uma leitura breve, simples, infantil, mas cheia de significados. Sulwe, o livro de Lupita Nyong'o.

Antes de continuar minha narrativa sobre como esse livro me trouxe diversas reflexões, preciso investir um parágrafo para falar sobre sua criadora, Lupita Nyong'o. Mulher preta retinta, queniana-mexicana, residente nos Estados Unidos da América, atriz, produtora e escritora, vencedora do Oscar por sua interpretação de Patsey, em 12 anos de escravidão. E o detalhe importante para esta narrativa: como mulher preta de pele retinta, ela caminhou numa longa estrada de inadequação e aceitação.

Neste conto de fadas conheci Sulwe, uma menina negra com seus 9 anos de idade, que apresenta uma pele escura - da meia noite, como traz a poética do livro. Linda! Mas que não se gostava por ter a pele mais escura de todas as pessoas que a rodeavam - e, atente-se a um detalhe, caro leitor: Sulwe era rodeada de pessoas da pele negra, mas de tons claros, como a sua irmã. Eis que tive o meu primeiro aprendizado: o racismo é tão latente que o tom da sua pele te diferencia até mesmo dos seus.

Sulwe via a diferença no modo que as pessoas a tratavam comparado ao tratamento da irmã, de pele clara. Sem contar que os elogios mais amáveis eram direcionados à irmã e não a ela. Segundo aprendizado: o racismo é tão cruel que faz com que pessoas negras disputem entre si.

Sulwe, de apenas 9 anos, meu amigo leitor, tentou passar borracha na sua pele para se clarear, tentou aplicar maquiagens e até conversou com Deus para ser gentil e dar-lhe uma pele mais clara. Terceiro aprendizado: o racismo é tão doloroso que faz com que tentemos apagar quem somos para sermos aceitos.

Paro por aqui de falar sobre as passagens desse livro para não entregar todo o ouro a você. Te convido à leitura. Mas sigo com o quarto aprendizado: precisamos falar sobre racismo e, ainda mais, sobre colorismo.

Resumidamente, colorismo significa que dentro da mesma identidade racial negra há um espectro amplo de tonalidades de pele, do mais escuro ao mais claro, do fenótipo e da textura do seu cabelo, que muitas vezes define o tratamento que a sociedade dá a essa pessoa. E a matemática é fácil: quanto mais escura - ou retinta - for a cor da pele, maior a discriminação sofrida. Sem falar do "não-lugar" da pessoa negra da pele clara - mas isso já é assunto para outro papo.

O racismo por si só fez com que odiássemos até mesmo nossos irmãos de cor. Já estamos enredados numa armadilha tão bem arquitetada que o desafio é nos desemaranhar. Ainda vejo muitas mulheres negras da pele retinta, cabelos tipo 4C e fenótipo negroide que ainda não são bem representadas. O meu maior medo é sairmos da caixinha de um padrão de beleza da mulher branca e entramos em outra, da mulher negra global tipo Sheron Menezes ou Tais Araújo - cuja beleza é mais aceitável na nossa sociedade. Está aí o quinto aprendizado: a importância de continuarmos militando por representatividade.

Obrigada Lupita por ser essa mulher e por trazer sua experiência - creio eu, muito dolorosa - nessa personagem que exemplifica com leveza e beleza a sua vivência e a de tantas outras mulheres negras retintas. Te convido agora, caro leitor, à reflexão.

*Jess Gonçalves é gerente de projetos e fotógrafa nas horas vagas. Se orgulha de ter assinado o roteiro, direção e a produção executiva do filme documentário "Do Amor à Cura", contemplado pela SPcine, em 2017, sobre a afetividade na vida de mulheres negras. E, recentemente, fez a produção executiva da web série Nossa História Invisível, realizada pelo coletivo Pujança.

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