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No tempo d'eu menino: um retrato sobre o porquê da migração

José Sarmento é escritor de literatura periférica e autor de oito livros - Arquivo Pessoal
José Sarmento é escritor de literatura periférica e autor de oito livros Imagem: Arquivo Pessoal

José Sarmento*

22/12/2019 04h00

Casa humilde abraçada por serra gigante para eu menino, era refúgio para uma família com muitas crianças querendo mimo de braços de adultos e comida no prato para saciar a fome.

Uma escadinha no tamanho dos moleques, apontava a cada dois anos um óvulo fecundado. Havia fervor no prazer de se amarem abraçados na quentura das noites sertanejas.

O catre pocilga de vara de marmeleiro amparava colchão de palha de junco, sempre pronto para receber corpos se unindo para fazer novos filhos.

Meu eu menino tem em memória a pobreza, muitas vezes base movediça para motivo de lágrimas no rosto de minha mãe que chorava escondida dos filhos em algum canto mal-cheiroso.

De um cantinho de solidão via minha mãe roer restos de unhas carcomidas pela aspereza do sabão, ao retirar fedor de mijo de trapos da grande família.

Quantidade de filhos colocados no mundo sem pensar nas conseqüências de como criá-los, não levava a fábrica fechar a linha de produção. Mesmo vivenciando cotidianamente quão difícil cuidar de tantos filhos, continuava a fábrica com a chaminé acesa soltando jatos de gozo dentro de enorme ventre materno.

Estação climática sempre aparecia de tempo ruim para o sertanejo selar o riso, bem mais que tempo bom para lhe abrir caras felizes.

Momento coisa-ruim não existia para a fábrica de embrião humano perder tempo de galar óvulo e gerar filhos, prontos para no adulto dos dias que se alargava, virar retirantes para plagas distantes.

Muitas crianças nasciam concebidas nas noites de qualquer estação de qualquer tempo com sol, chuva, mormaço. A solidão era quebrada no buliçoso de dedos calosos acarinhando corpo ainda de pele macia de mãinha.

Muito dos bens dos bons anos de inverno desapareciam com pressa, quando a seca castigava a terra, e a gretava em fragmentos desalinhando o solo. A face do sertanejo nesses momentos virava protagonista das aflições causadas pelas estiagens.

A terra rachada em milhões de seguimentos formava um quadro surrealista, só vindo virar arte-bela pela técnica da fotografia, ou por mãos de ótimo artista do lápis ou pincel ilustrando sua derrocada nos campos ignotos.

Terra preta nuns cantos largos do sertão, avermelhada noutras áreas imensas, dava nó em visão de agricultor, quando o sol era o anteparo, e não as nuvens carregadas.

Muitos filhos pequenos exigiam mastigar o que a terra produzia de suas entranhas. Nas secas os adultos viam que não dava mais para viver de mastigar sol e calor. Terra segmentada, desamparada pelo desaparecimento das plantas viçosas e dos animais, virava terra de solidão.

O agricultor migrava para outras áreas nas secas brabas. Os homens deixavam mulher e filhos no vazio dos dias mastigando calamidades, produzidas pelos coronéis que demandava poder de arbitrar barbaridades.

As famílias tinham na terra seu sustento nos bons invernos, nos ruins, tudo sucumbia. Pernas bambas de gente famélica davam movimentar para outras áreas do brejo, do cariri, ou para alguma capital dos Estados do país em desenvolvimento horizontal e vertical.

A construção civil e as fábricas dominavam o movimento dos paus-de-arara singrando estradas de terra pelo sertão. Produzia poeira e dor em peitos de homens resistentes as estiagens alarmantes.

As secas medonhas traziam doenças e abandono às crianças sem amparo, quando o leite materno desaparecia da boca de muitas delas.

A maioria das mulheres sertanejas, cada ano recebia nova cria em ventre preparado, para pôr no mundo, muitos filhos sem destino traçado, nem de como sobreviver amparados por alguma economia.

Estudar os deveres nos cadernos e livros, nesse período, só a elite entendia que merecia.

Filetes de lágrimas escorriam no rosto pelos encovados canais das rugas dos pais, quando negava aurora primaveril da cor do anil, tempo de inverno sem negação.

Tapera humilde recebia toda noite, muitas redes estendidas com corpos de jovens e crianças. Redes balançavam impulsionadas pelo movimento dos pés, quando dava de encontro com parede sem reboco na casa de taipa.

Em companhia de muitos filhos vindos de um só ventre, surgiam uma vez ou outra, homens do governo com pulverizadores nas costas para branquear as paredes da tapera de veneno, dizendo o responsável pelo evento, ser a mando de sanitaristas para dizimar ovos de barbeiro.

Estavam matando gente, dando prejuízo às finanças do governo, por gastar muito do bem público com a doença de Chagas.

Informou o homem de branco, não tivessem medo não, podia as crianças partir pra cima e torar o rabo das lagartixas, mais tarde elas apareciam de rabo novo.

Havia muito sofrimento dos homens e dos jumentos, animais que serviam para jabá, depois de trabalhar tanto carregando peso no espinhaço para as trempes de fogão a lenha, de transportar sacos de mantimentos colhidos nas roças e capim para os cercados de varas que resguardava algum animal leiteiro.

O tempo por aquela região do polígono das secas vivia de tempo ruim num tempo, de tempo bom noutro, mas bem menor os bons tempos que os ruins.

Morcegos encandeados pela amarela lâmpada do teto da tapera, alumiando feito ouro de tolo, fossem chupar sangue de animais e não de meninos nas madrugadas. Eles não possuíam bons fluidos para movimentar o corpo, muitos já se achavam tortos pela desnutrição infantil.

Vaquinha presa no cercado de arame farpado, não dava mais de alimentar as crianças, pela falta de verde pasto. Choramingavam puxando a saia da mãe querendo leite de peito que perdeu a virilidade e dureza.

Crianças muitas, sustentadas na sua essência familiar, pelo homem mais valente do sertão, davam movimentar pelos matos e terreiros, pernas nuas e pés descalças. Barrigas salientes demonstravam vermes estocados. Comprimidos para lombriga faziam mais tarde despejar os montes pelos matos dos aceiros de casa.

Cabra da peste como aquele não existia. Cabra de passado de cangaço e de proteção a coronéis poderosos e parentes politiqueiros do sertão.

Homem de passado que se dispôs entocar-se nas brenhas das capoeiras, para pegar de surpresa, o inimigo da política dos coronéis dos anos trinta. Derrubava jagunços dos poderosos inimigos que queriam administrar o poder do sertão a seu modo.

Com tiro de coiteiro certeiro com rifle papo amarelo, o inimigo de outra facção política, de disputa por terra e derrubada de cerca, visitava o chão. Lá ficava para sempre sem bater as pestanas, nem saber de onde partiu a munição que o varou no peito e o jogou ao chão.

De cem metros alvejava o coração de ossos em movimento, sobre montaria. Era conversa ouvida do homem que um dia, alicerçado pelo poder de matar, viveu esse período do sertão do vale-tudo sem lei.

Cabra que atirava como ele se garantia empregado com passagem e carta de alforria, liberdade para viver acoitado em qualquer terra que quisesse, de coronel poderoso, ou de político que lhe desse proteção.

Quem tivesse mais poder, o levava como protetor das sesmarias sem quais quais quais nem lê, lê, lê.

A tapera do cabra pau para toda obra suspensa por paus de aroeira da braba caatinga, com certeza de prazer nas horas de fazer muitos nenéns, viu nascer dez rebentos, escapar oito com vida sem vida, sem irmandade nem anestesia para sarar as dores da agonia da fome.

Os filhos viviam pulando feito potro brabo, sem arreio, pelo meio da tapera dispersa, terreiro e adjacências, livres para fazer o que desse na telha infantil e juvenil.

Não existia preocupação de encontrar pela frente, alguém que os fizesse mal, além da fome e a pobresa do entorno. O medo amedrontava mais, quando a mãe gritava. "Entra pra dentro, menino, cuidado com o papa figo!"

Pessoas de má índole, diziam, pegavam criança pequena pelas capoeiras e arrancava o fígado para vender às famílias de quem tinha gente com problema hepático e muito poder em bens e dinheiro.

Medo dos ciganos também fazia moleque se esconder nas brenhas, ou por baixo da saia de qualquer um da família mulher. Diziam que os ciganos roubavam o que viam de interesse, jogavam praga a quem não ajudasse com esmola de caneca de grão de feijão, arroz, farinha, café, galinha, peru, pato, pedaço de leitão, carne de sol.

A tristeza maior para moleque vinha quando na hora do almoço, jantar, merendar, via no prato de barro, o pastoso angu da cor de sangue. Sangue que escorria dos buchos de cabras arruaceiros, que mexiam com moça donzela e não se sujeitavam a casar na polícia.

Faca, punhal e bala faziam estrago no corpo de quem não impunha respeito.

Sentia que a seca ressurgia, trazendo um pouco do purgatório, levando um pouco do céu para fora do prazer que emanava dessa época de fartura.Na chuvarada.

Abastança de milho cozido, assado, pamonha, canjica ao sabor de canela em pau, desaparecia nas estiagens prolongadas, era quando dava de crescer o bucho das crianças, pela terra e bosta de animais virarem insumos em alimento.

Desaparecia nas estiagens grãos como fava, feijão verde com nata nadando em caldo saboroso, arroz novinho grudado por ser filhote de grão branquinho ou vermelhão. Nas secas brabas só sobrava para alimento alguma farinha encaroçada ou feijão sem serventia nas vendas de espertos comerciantes. O milho bichado para o moinho triturar e virar cuscuz, também matava a fome dos flagelados.

Colhidos nas terras de vazantes, surgiam com fartura nas casas dos agricultores todo tipo de legumes. Na chuvarada.

Só a terra tinha o poder de produzir sorriso farto. Na chuvarada.

Fartura de sorriso nos lábios preenchia cara de moços e velhos. Na chuvarada.

As chuvas traziam muita fartura e ainda segurava o agricultor no seu habitat, perdendo as capitais do país mão de obra barata para as lidas nas construções e fábricas de moer carne de gente deixando a alma demente.

A seca trazia muitos desenganos para o sertanejo que, por causa dela, estava sempre preparado para migrar como retirante.

*José Sarmento é escritor de literatura periférica, autor de oito livros. Tem imersão como educador e líteropalestrante em escolas públicas. Trabalha com jovens e adultos uma trilogia que escreveu sobre bairros periféricos: Bixiga, um cortiço dos infernos; Paraisópolis, caminhos de vida e morte; Ângela, um jardim no vermelho. Pais analfabetos. Aprendeu a ler só aos 14 anos de idade e, de lá pra cá, nunca parou de ler e escrever. Terminou o ensino médio depois dos 50 anos e graduou-se em História.

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