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REPORTAGEM

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Sobre algo perigoso que é importante fazer

André Gravata é poeta e educador  - Arquivo Pessoal
André Gravata é poeta e educador Imagem: Arquivo Pessoal

André Gravata*

08/12/2019 04h00

Naquele dia acordei cedo, silencioso e saí para caminhar. Caminhar ainda no escuro e ver o dia amanhecer é presenciar o sol alargando cada coisa. Enquanto caminho, penso como era na época em que minha mãe e meu pai saíam às cinco da manhã ou antes, lá na periferia de Embu das Artes, para o ponto de ônibus, rumo ao trabalho, anos em que o chão de terra não era escondido de asfalto, quando não tinha iluminação nas ruas. Saíam de casa no breu total, com olhos e medos bem abertos. Entravam em contato com uma noite esticadinha em cada centímetro de mundo.

Naquele dia da minha caminhada, a noite estava pontilhada de pequenas luzes de postes no horizonte. E quando o dia já estava claro, cheguei num lugar com árvores, como uma pequena praça, daí caiu uma folha bem diante de mim. Pensei: toda vez que cair uma folha à minha frente vou parar e prestar atenção em dez coisas que não tinha percebido até então naquele pedaço de mundo. Como um jogo na cidade. Um ritual num impulso. E de onde veio a vontade de fazer isso? Da fome por uma âncora, provavelmente. Aquela folha que despencou tão perto era como uma âncora maior que a de um navio transatlântico.

Prestei atenção que havia um barulho de torneiras abertas perto do lugar onde eu estava, de onde tirei o nome para batizar esse exercício de intimidade com o mundo. A partir daquele momento, toda vez que cai uma folha assim em frente é a hora de uma pausa para listar as "torneiras abertas". E a intenção não é apenas contar dez novas percepções. Não, não é mais uma lista para se somar às várias que nos cansam. Esse exercício de perceber o real ao redor é um pretexto para acordar a perplexidade e o estranhamento no corpo. Em outras palavras, o ato é o seguinte: olhar para a mesma cena em que eu já estava mergulhado e esmiuçá-la como quem cata dez grãozinhos de feijão numa bacia de milhares e milhares de grãos.

Outro dia, antes de atravessar a rua, ao lado da minha companheira, caiu uma folha exatamente em frente ao meu pé. E eu parei. Perguntei: "Tudo bem a gente passar uns minutos aqui?". Durante esse tempo de observação era como se um tecido de bordados se desdobrasse em resposta, uma laranja se descascando em gomos diante de nós, uma dobradura se revelando de esconderijos. Aquela folha caída convidava a perceber o chão, as pessoas e suas janelas, os abandonos e barulhos. Esse é um convite que abre espaço para o instante. Depois do dia em que paramos antes da faixa de pedestres por causa da folha de árvore, era inevitável a sensação de vínculo com aquele espaço a cada vez que nossos pés pisavam lá novamente. É como se, quando a gente cria intimidade com um espaço ou alguém, esse ponto do mundo ou pessoa se torna parte de nós com um destaque, como quando a gente marca um texto com uma caneta amarela fluorescente ou sublinha uma palavra.

Sei que nem sempre o corpo estará em condições de observar o mundo mesmo com o chamado da folha fincada no chão como âncora. O sistema da rotina está configurado para que a maioria dos corpos seja violentada e que a pedagogia da dor e da anestesia tome o lugar da autonomia e da percepção. Ainda assim, a preciosidade que nos acompanha e que vale ser lembrada é essa força que nasce no corpo a cada espanto em contato com a realidade. É uma força palpável, poética, política, como um músculo que precisa ser movimentado dia após dia para existir com intensidade. Uma poeta que transborda de espanto e certamente se dava conta das folhas que caiam diante dela é a polonesa Wislawa Szymborska. Numa noite, a poeta e uma outra pessoa amiga pararam numa praça para observar as estrelas. Apontavam onde estava a Ursa Maior. A Menor. Perguntavam-se se era possível ver Marte. Pouco a pouco, mais gente se aproximou das duas e se formou um grupo maior.

"No dia seguinte começou a circular o rumor de que um OVNI havia sobrevoado a cidade (?) A verdade é que se trata de uma história engraçada e um tanto triste ao mesmo tempo. É preciso realmente acreditar em OVNIs para parar alguma vez e observar o céu?", diz a poeta no livro Prosas Reunidas. Ela viveu essa situação no final do século passado, então disse também: "Não sei se a humanidade vai melhorar com o novo milênio. Mas para alguns de nós há o brinde de uma oportunidade. Bastaria mais estranhamento com um pouco de tudo? Do que há em nós, junto a nós, ou, melhor ainda, sobre nós".

Encarar o real com espanto e estranhamento é perigoso demais, porque abre espaço para novas perguntas, questiona o que é considerado "normal" e isso coloca em perigo o padrão de mundo em funcionamento ainda hoje - uma máquina de repetir automatismos e entupir sentidos.

Nas próximas vezes que você estiver em movimento e uma folha de árvore cair por perto, chamando sua atenção, pergunte-se: "o que há de espanto aqui que ainda não vivi?".

*André Gravatá é poeta e educador. Filho de pais nordestinos (Paripiranga, Bahia), nasceu em Cotia, São Paulo, em 1990. É um dos idealizadores da Virada Educação e do jornal das miudezas, além de autor do livro de poemas Inadiável, coautor de Volta ao mundo em 13 escolas — uma jornada por espaços de aprendizagem de nove países — e organizador do Cartas a jovens educadores/as.

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