Saúde mental: é preciso frear a próxima epidemia

Logo que a pandemia se instalou, um alarme disparou na OMS (Organização Mundial da Saúde): saúde mental, um tema que já pedia mais atenção antes da maior crise sanitária do século, provavelmente poderia ser o foco de uma epidemia posterior à de covid-19.

De olho nas transformações impostas ao modo de vida nos primeiros países atingidos pelo coronavírus —que até então pareciam temporárias—, a OMS aplicou pesquisas que apontaram aumento alarmante de quadros graves de depressão. E, ainda, que o pós-pandemia poderia deixar como legado sistemas de saúde sobrecarregados. O que, em lugares como o Brasil, significaria aprofundar desigualdades sociais no acesso a tratamentos psíquicos.

O Brasil, vale lembrar, já é considerado o país mais ansioso do mundo há alguns anos. E está entre os cinco primeiros no ranking dos mais depressivos. Partíamos, portanto, da linha da desvantagem da sanidade quando a pandemia chegou por esses lados.

Um cenário que seria agravado nos meses seguintes, quando atividades comerciais e sociais, além de escolas, ficaram fechadas por um longo período por causa da crise da covid.

A 2ª Semana de Saúde Mental, realizada pelo VivaBem e que contou com um evento ao vivo no dia 14 de outubro, se dedicou a entender a dimensão desses impactos, trazer orientações sobre como lidar com transtornos mentais e o luto —um sentimento que, de forma inédita, atingiu um enorme contingente de pessoas— e ainda, com aspectos mais contemporâneos, por exemplo, como o preconceito influencia na sanidade de grupos minorizados como negros, mulheres e LGBTQIA+.

Apresentado por Mariana Ferrão, jornalista e CEO da Soul.Me, o evento virtual contou com participações do psiquiatra Jairo Bouer, da psicanalista Manuela Xavier, do cantor Projota, da atriz Duda Reis e muitos outros especialistas e personalidades que compartilharam suas experiências profissionais e pessoais.

Mariana Pekin/UOL

Somos o país em que mais se sofre de transtornos de ansiedade, que atinge mais de 20 milhões de brasileiros e brasileiras. Problema tão comum, mas cercado de mitos.

Mariana Ferrão, jornalista, CEO da Soul.Me e apresentadora da 2ª Semana da Saúde Mental VivaBem

Voltar ao normal será normal?

Na abertura do encontro, Mariana Ferrão destacou: "É preciso falar mais e com naturalidade sobre transtornos mentais. E sobre os cuidados que precisaremos ter para a saúde mental se restabelecer junto com a nova normalidade."

A expectativa de um retorno próximo de uma vida parecida com o que era antes cresceu na medida em que avançava a cobertura vacinal e caíam o número de casos e mortes em decorrência da covid.

No entanto, se por um lado já é possível sentir maior segurança física, a segurança emocional ainda será um desafio para muitas pessoas. Não obstante à capacidade humana de se adaptar a mudanças e adversidades, a sobrecarga de estresse a que tantos foram submetidos é algo que não passará imediatamente com a retomada. Pelo contrário, possivelmente muitos terão de lidar com novas formas de ansiedade, depois de tanto tempo isolados do "mundo real".

Este deverá ser um ponto de atenção individual, mas também das empresas, conforme alertou a psicóloga Ana Maria Rossi. "Não existe por parte de muitos empregadores um projeto de retorno, as coisas simplesmente vão indo. Então, imagino que a elevação da ansiedade que percebemos seguirá aumentando", diz ela.

Kalil Duailibi, médico psiquiatra, acrescenta que para além da recuperação das rotinas e atividades comerciais, a retomada precisa focar em qualidade de vida, "com atividades físicas, meditação, psicoterapia e, se necessário, até medicação."

Empresas precisarão de um projeto de retorno, ou a elevação da ansiedade que percebemos seguirá aumentando

Ana Maria Rossi, psicóloga e presidente da International Stress Management Association

A retomada precisará focar na qualidade de vida, com atividades físicas, meditação, psicoterapia e até medicação

Kalil Duailibi, médico e presidente do Departamento Científico e de Psiquiatria da APM (Associação Paulista de Medicina)

Confira o painel 1 na íntegra

Chega de tabus sobre o mal do século

Considerada o mal do século, a depressão ainda é um assunto cercado de tabus. O que contribui para a desinformação —e o estigma, que não raro classifica episódios de angústia e tristeza profunda como passageiros— e para o isolamento de quem sofre com o transtorno.

Em pesquisa realizada pelo Ibope no ano de 2019, mais de 60% dos adultos com idade entre 25 e 34 anos declararam que teriam vergonha de contar para a família caso fossem diagnosticados com depressão.

É comum associar o desenvolvimento da doença a alguns gatilhos como fim de relacionamentos, falência, perda do emprego, falecimento de entes queridos e outros eventos que, por consequência, causam enorme tristeza e frustração.

Atualmente, porém, como lembra a psicanalista Manuela Xavier, essa lista de "razões para deprimir" ganhou novos componentes. "Estamos falando de dois anos de pandemia, do país voltando para o mapa da fome. Certamente a questão psicológica sofre impacto das questões sociais e políticas."

Não parece haver outro caminho, portanto, que não seja incentivar o diálogo sobre o assunto. Em todos os ambientes, incluindo o profissional, onde 35% das pessoas ainda não se sentem confortáveis para compartilhar a depressão com seus chefes, mesmo que até grandes corporações tenham investido em programas de saúde mental ao longo do último ano e meio.

Cicinho, ex-jogador de futebol, que já disputou uma Copa do Mundo e foi estrela no São Paulo, um dos maiores clubes brasileiros, enfrentou durante a carreira um quadro depressivo, que o levou ainda ao abuso do álcool —um hábito que, durante a pandemia, atingiu 44,3% das pessoas, conforme levantamento divulgado pela Fiocruz, em alerta ao uso de substâncias lícitas e ilícitas no período.

Depoimentos como o dele são imprescindíveis para desmistificar uma das crenças mais prejudiciais ao diagnóstico e tratamento de transtornos mentais: associar bons momentos de vida, carreira bem-sucedida ou, no caso de crianças e adolescentes, a boa performance escolar à impossibilidade de aquela pessoa estar lidando com dificuldades emocionais como a depressão.

Pessoas deprimidas precisam de apoio e tratamento, não de julgamentos que só atrapalham e dificultam a vida

Jairo Bouer, psiquiatra, comunicador e colunista de VivaBem

Dois anos de pandemia, Brasil voltando para o mapa da fome. O psicológico certamente sofre o impacto das questões sociais e políticas

Manuela Xavier, psicanalista e doutora em psicologia clínica

Confira o painel 2 na íntegra

O caminho do luto à luta

Especialistas dizem que são cinco os estágios que os enlutados atravessam para elaborar o sentimento e se sentirem prontos para seguir. O primeiro é chamado de negação e, como o próprio o nome sugere, trata-se do período em que é quase inacreditável que aquele episódio muito traumatizante tenha ocorrido (geralmente, a perda de uma pessoa amada).

Em seguida, podemos ser tomados pela raiva e indignação, com nós mesmos ou terceiros. Depois do alívio que a revolta pode trazer, é comum que o enlutado se veja pensando no que poderia ter feito para evitar tal situação.

A quarta fase é aquela em que, coloquialmente dizemos, "cai a ficha". E, não raro, pode-se também cair em depressão. Para então partirmos para a linha de chegada do processo de dor, explicada por especialistas como a quinta e última etapa, a de aceitação.

Este, no entanto, não é um caminho exatamente linear, como pondera a psicóloga Maria Helena Franco, coordenadora do Laboratório de Estudos e Intervenções sobre Luto da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo).

"Haverá momentos e datas marcantes, que podem abater aqueles que parecem estar vivendo uma fase melhor em relação a uma perda", explica.

É preciso lembrar que durante a pandemia, milhares de pessoas não tiveram chance de despedida dos familiares e amigos mortos em decorrência da covid ou não. E a falta desse ritual faz com que o processo de superação da perda seja ainda mais longo e demorado.

"O luto é uma experiência que precisa ser acolhida e vivida", ressalta Franco. Na impossibilidade de vivenciar os simbolismos que trazem o entendimento e elaboração do luto, é possível afirmar que muitos revisitaram suas dores. Não há receita que torne o momento mais fácil, mas como em qualquer processo de luto, o conforto e apoio devem vir em forma de presença, escuta e validação do sofrimento.

Todos somos enlutados em potencial. Se amamos alguém, em algum momento passaremos pelo luto

Cynthia de Almeida, jornalista e fundadora do site "Vamos falar sobre o luto"

O enlutado não precisa que lhe digam para fazer isso ou aquilo. O que ele precisa sentir é que há alguém com ele, genuinamente

Maria Helena Franco, psicóloga e coordenadora do Laboratório de Estudos e Intervenções sobre o Luto

Confira o painel 3 na íntegra

Racismo e LGBTfobia: questão de saúde mental

Não são raras as histórias de homossexuais ou pessoas não binárias que, em busca de acolhimento e apoio para lidar com a sexualidade, encontram desde minimização da questão a sugestões de profissionais que ofereçam "tentativas de reversão".

A falta de entendimento profundo e empatia são ainda uma dificuldade adicional para a população negra, mesmo quando a procura é por tratamento especializado. Não por acaso, jovens negros têm 45% mais riscos de desenvolver depressão e, entre homossexuais, a probabilidade de cometer suicídio é cinco vezes maior se comparada a heterossexuais.

Médica ginecologista, Marcela MC Gowan ficou famosa ao participar do BBB, onde inclusive falou abertamente sobre sua bissexualidade. "Tudo que mexe com a construção da nossa identidade afeta a saúde mental", afirma. E acrescenta que entre a população LGBTQIA+ há a necessidade adicional de constantemente reafirmar quem se é.

Roberta Federico, psicóloga e estudiosa do impacto do racismo na saúde mental, lembrou que, entre a população negra, "andar com todas as antenas ligadas e pensar em todos os seus passos o dia todo, como se fosse um jogo de xadrez, é perturbador e exaustivo." E um reflexo das estatísticas que fazem deste grupo o mais vitimado por todos os tipos de violência.

Com os holofotes mais voltados mundialmente para a saúde mental, se faz necessário encarar interseccionalidades e multiplicidade das opressões tanto nas soluções propostas quanto na formação dos profissionais.

Com relação aos agravantes no período de pandemia, Bruno Branquinho, psiquiatra e professor do curso de saúde LGBT da Faculdade de Medicina do Hospital Albert Einstein (SP), pontuou como o ambiente doméstico é um retrato da sociedade. O que desencadeou efeitos devastadores naqueles que se viram forçados a conviver com familiares que desconheciam sua orientação sexual.

É perturbador e exaustivo não poder viver com espontaneidade, ter que imaginar o que pensarão de você antes de agir

Roberta Federico, psicóloga, mestre e estudiosa do impacto do racismo na saúde mental

O ambiente doméstico é um retrato da nossa sociedade, onde muitas vezes não se pode ser quem é

Bruno Branquinho, psiquiatra pela USP, psicanalista e professor do curso de Saúde LGBT da Faculdade de Medicina do Hospital Albert Einstein

Confira o painel 4 na íntegra

Conversa de criança e adolescente sim!

Foi muito difícil para adultos e, acredite, também para jovens e crianças. Privados do convívio social, da sala de aula, e parte do caos que acontecia dentro de casa, eles também tiveram a saúde mental muito afetada. Há poucos dias, o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) declarou que o impacto da covid-19 na sanidade de crianças, adolescentes e jovens é significativo, mas somente a ponta do iceberg, pois para eles os efeitos ainda serão sentidos por muitos anos.

De acordo com a pesquisa "Situação Mundial da Infância 2021: Na minha mente: promovendo, protegendo e cuidando da saúde mental das crianças" (disponível em inglês), crianças, adolescentes e jovens adultos já lidavam com dificuldades na saúde mental antes da pandemia.

Estima-se que mundialmente um em cada sete meninos e meninas com idade entre 10 e 19 anos já conviva com algum transtorno mental. E essa é uma das principais causas de suicídio dos 46 mil adolescentes ou jovens adultos que tiram suas vidas a cada ano.

Daí a necessidade —e responsabilidade— de pais, cuidadores e educadores em se atentar mais ao tema e se mostrarem abertos ao diálogo. A atriz Duda Reis compartilhou como, aos 20 anos, teve que lidar com depressão, anorexia e transtorno de imagem. Médicos, seus pais sempre se mostraram abertos e o apoio da família foi fundamental em sua recuperação. Ainda assim, não foi fácil reconhecer que precisava de ajuda.

"Eu achava que quanto mais quieta ficasse, mais rápido me curaria. Quando, na verdade, quanto mais a gente fala, melhor", declara ela, que é influenciadora digital, com um perfil no Instagram seguido por mais de 9 milhões de pessoas.

Elânia Francisca, psicóloga e colunista de VivaBem, deixou o chamado: "Sermos adultos sensíveis, que enxergam adolescentes e jovens como sujeitos com pensamentos e questões, é um ato revolucionário".

Uma postura necessária enquanto outras lacunas mais profundas persistem nas esferas social e pública. Ainda conforme o relatório do Unicef, falta priorizar as políticas públicas em favor da saúde mental, visto que globalmente somente 2% dos orçamentos governamentais são destinados a isso, embora doenças neurológicas e psiquiátricas afetem 1 bilhão de pessoas e signifiquem custos diretos e indiretos de US$ 2,5 trilhões (o que corresponde a 4% do PIB mundial).

Que sejamos adultos sensíveis que enxergam adolescentes e jovens como sujeitos com pensamentos e questões

Elânia Francisca, psicóloga e colunista de VivaBem

Quando descobri estar deprimida, não foi fácil falar e aceitar que precisava de ajuda

Duda Reis, atriz e influenciadora

Confira o painel 5 na íntegra

A 2ª Semana da Saúde Mental VivaBem teve como objetivo estimular que as pessoas falem abertamente sobre transtornos mentais, pois esse é o primeiro passo para tratar esses problemas e trilhar o caminho do equilíbrio. Ela começou no último dia 14 de outubro, com um evento ao vivo, que debateu em 5 painéis temas como o impacto da pandemia na saúde mental do brasileiro, luto, depressão, ansiedade, saúde mental dos jovens e como o preconceito aumenta o risco de transtornos.

O evento está disponível na íntegra no canal do UOL no YouTube e teve apresentação de Mariana Ferrão, produção das jornalistas Diana Cortez e Bárbara Therrie, co-curadoria de Lúcia Helena de Oliveira e patrocínio de Libbs Farmacêutica.

Veja destaques da 1ª Semana da Saúde Mental VivaBem

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