Número de alunos com autismo matriculados nas escolas do Brasil cresceu 48%

Maria* não gostava de mandar beijo ou tchau quando bebê. Ao completar 3 anos, os pais perceberam que a pequena também tinha dificuldade de socializar com outras crianças e sempre preferia ficar brincando sozinha.

Nas tradicionais festas de família, ela também destoava das outras crianças, ao ficar mais agitada e agressiva mediante o barulho do evento. O mesmo acontecia na escola, onde o ventilador chamava mais atenção da pequena do que as brincadeiras oferecidas pela professora.

Diagnosticada com transtorno do espectro autista, ou TEA, Maria representa um dos 636 mil alunos com autismo no Brasil, segundo o Censo Escolar 2023, divulgado em 22 de fevereiro de 2024. Mas essa estatística não para de crescer.

Para se ter uma ideia, em apenas um ano, o número de matrículas de pessoas com TEA passou de 429 mil, em 2022, para 636 mil, em 2023 no país —um aumento de 48%.

No mundo, o número de diagnósticos de autismo também aumenta de forma acelerada. Levantamento do CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças) dos Estados Unidos mostrou que, se nos anos 1970 o número de diagnósticos de TEA estava na faixa de 1 para cada 10 mil crianças, em 1995 já havia pulado para 1 em cada 1.000 e continuou crescendo aceleradamente, até chegar a 1 a cada 59 em 2018 e 1 a cada 36 em 2023.

O que explica o crescimento?

Especialistas ouvidos pelo VivaBem apontam uma série de fatores para o crescimento de casos de autismo nos últimos anos no Brasil.

Para Tatiana Martins, professora da Faculdade de Psicologia da UFPA (Universidade Federal do Pará), o maior acesso da população ao diagnóstico do TEA e a maior conscientização de profissionais de saúde e educação quanto à existência dos transtornos do neurodesenvolvimento podem ser as causas do aumento.

"Contudo, já estamos vivendo uma temporada de diagnósticos inadequados também. Temos casos de transtornos de personalidade e de linguagem frequentemente diagnosticados como transtorno do espectro autista", aponta Debora Marques de Miranda, professora do Departamento de Pediatria da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

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Segundo ela, ainda há despreparo dos profissionais. "Atualmente, o diagnóstico para o autismo tem sido amplamente dado por profissionais mal treinados e nada experientes, gerando claros excessos, o que é ruim para todos, sobrecarrega o sistema e gera dificuldade de acesso para quem de fato precisa do tratamento de autismo", diz.

Segundo Antônio Geraldo da Silva, presidente da ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria), muitos pacientes chegam ao médico com o "diagnóstico" já feito.

O paciente chega ao médico já com o diagnóstico feito e demanda dele somente sua validação (muitas vezes acompanhada por um pedido jurídico), para que possa obter o benefício (terapêutico ou social) que deseja. E o médico, infelizmente, acaba cedendo à pressão para não perder o cliente ou se defrontar com uma situação desagradável, fazendo com que o número de diagnósticos TEA aumente no país. Antônio Geraldo da Silva, presidente da ABP

Escola também tem seu papel

Apesar de o Brasil vivenciar uma escala vertiginosa de casos de autismo, ainda faltam políticas públicas para o diagnóstico correto e acompanhamento dos pacientes pelo SUS. "Quanto mais tarde o tratamento é iniciado, pior é o prognóstico e o desenvolvimento do paciente", ressalta Antônio Geraldo da Silva.

Tatiana Martins, professora da UFPA, defende o investimento na capacitação de profissionais da educação para acolher os cada vez mais recorrentes estudantes com autismo. "A escola tem um papel muito importante no processo de identificação dos sinais característicos de TEA. Afinal, é no ambiente escolar que a criança interage em boa parte do seu dia."

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"Professores, psicólogos e outros profissionais atuantes nesse contexto podem estar atentos aos sinais de TEA e dividir com a família suas observações e avaliações, assim como podem vir a atuar como facilitadores no processo de desenvolvimento dessas crianças, a partir de um possível diagnóstico", diz Martins.

Causas do autismo

Pesquisadores do mundo todo têm buscado entender quais fatores aumentam o risco de uma criança nascer com TEA. Embora boa parte das perguntas ainda continuem sem respostas, alguns estudos indicam que questões genéticas e fatores externos podem estar por trás.

"Vários fatores podem estar relacionados ao aumento do risco de ter autismo, tais como ser prematuro, ter familiares de primeiro grau com o transtorno, ter exposição ambiental ou ter passado por infecções na gestação", explica Miranda.

O uso de determinados medicamentos (como valproato, que trata epilepsia) e o próprio estresse durante a gestação também aumentam o risco. Ao mesmo tempo, bebês do sexo masculino apresentam a maior prevalência de ter o transtorno do que as meninas.

Os sinais do TEA

Geralmente identificado na infância, o transtorno apresenta sintomas diferentes para cada faixa etária. Segundo Martins, o sinal mais recorrente em todos os pacientes é a dificuldade de sociabilidade.

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"De modo geral, pessoas com diagnóstico de TEA podem apresentar falta de interesse em atividades sociais. Por exemplo, crianças podem preferir brincar isoladamente ou com pessoas adultas do que com outras crianças na mesma faixa etária. É possível também notar que tanto adultos como crianças com TEA podem apresentar certa dificuldade para iniciar e manter uma conversa."

A professora da UFPA também aponta outros sintomas característicos, como a seletividade alimentar e o interesse e conhecimento extremo sobre um determinado assunto. "Assim, é comum termos pacientes com autismo com um nível de conhecimento avançado sobre times de futebol ou determinado tema histórico", diz.

Joana Portolese, psicóloga e coordenadora do Protea (Programa do Transtorno do Espectro do Autismo) do Instituto de Psiquiatria da USP (Universidade de São Paulo), também ressalta as dificuldades do autista com ambientes ruidosos. "A criança com autismo, normalmente, tem dificuldade para lidar com ambientes barulhentos. Além disso, ela pode apresentar movimentos repetitivos e até não gostar de determinadas texturas e toques físicos", diz.

Portolese ressalta que no caso de adolescentes e adultos com autismo, grande parte dos pacientes descobre o diagnóstico ao estar em tratamento para outro transtorno mental, como TDAH, ansiedade ou depressão. "Nesses pacientes, existe uma dificuldade maior de decodificação do autismo, mas é possível. Normalmente, são pacientes que chegam ao consultório com uma dificuldade de lidar com mudanças na rotina ou tem pouco contato social."

Idade correta para o diagnóstico

Atualmente, os primeiros sinais de que uma criança pode ter autismo podem ser observados a partir dos 6 meses de idade. No entanto, pesquisadores ponderam que nesse período os sinais são mais de alerta do que passíveis de diagnóstico.

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"O diagnóstico não é simples, uma vez que a criança, principalmente entre 0 e 2 anos de idade, apresenta comportamentos sensório-motores, o que dificulta avaliação de sociabilidade, linguagem e comportamentos imaginativos caracterizados pela atividade ritualística e repetitiva", diz Francisco Assumpção, médico psiquiatra especialista em infância e juventude da ABP. "Mas esse diagnóstico pode sim ser realizado precocemente a partir de avaliação clínica."

De acordo com ele, o diagnóstico mais certeiro somente é possível de ser feito a partir dos 3 anos de idade.

No mundo, a literatura médica divide o transtorno em três níveis, que se diferem a partir da gravidade e necessidade de suporte por parte do paciente para tarefas comuns do cotidiano.

Nível 1: as dificuldades derivadas dos sintomas apresentados não são restritivas para o desenvolvimento quando atreladas a algum tipo de suporte. Apresentam dificuldade para iniciar e manter uma conversa, não conseguem perceber as nuances de uma interação social, como falas com tom de ironia. São indivíduos que, apesar de certa fixação por padrões, ainda conseguem se adaptar às mudanças na rotina.

Nível 2: sem auxílio, as pessoas nesse quadro acabam lidando com mais desafios para o seu desenvolvimento. É comum que pessoas com nível 2 apresentem maior dificuldade para lidar com mudanças e com situações sociais mais complexas.

Nível 3: caracteriza-se por quadros severos, nos quais é indispensável o suporte para o desenvolvimento. Quando não estimuladas, apresentam repertórios mais rígidos e inflexíveis, ou seja, lidam com grande dificuldade quando ocorrem mudanças cotidianas e dependem de mais apoio para iniciar interação social.

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Como funciona o tratamento

O diagnóstico do TEA envolve uma equipe multidisciplinar, sendo, geralmente, iniciado por meio de uma entrevista e observação do paciente. Em caso de confirmação, o tratamento envolve profissionais da psicologia, psiquiatria, fonoaudiologia, terapia ocupacional, odontologia e até fisioterapia.

"A reabilitação consiste basicamente em uma abordagem psicossocial, com aconselhamento familiar efetuado por terapeuta de família; atendimento odontológico; atendimento psicológico, visando desenvolvimento de habilidades sociais", explica Francisco Assumpção.

Segundo ele, a psicofarmacoterapia é necessária em apenas um terço dos casos de autismo.

"Quanto mais cedo se inicia o processo interventivo, maior a probabilidade de amenizar os sintomas característicos, reduzir excessos comportamentais, proporcionar melhor qualidade de vida para o próprio indivíduo e para aqueles que convivem diretamente com ele", afirma Martins.

*Maria não foi identificada a pedido da mãe

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