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Sintomas, prevenção e tratamentos para uma vida melhor


Ele tem síndrome rara que afeta ao menos 19 pessoas na família

Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

De VivaBem, em São Paulo

05/07/2023 04h00

A semelhança física entre Leandro Gomes Ferreira, 42, e os primos dele ainda na infância causou estranhamento na família. Levados para o hospital, todos foram examinados e diagnosticados com a mesma doença genética rara: síndrome de Hunter, um tipo de mucopolissacaridose. Mais tarde, ele descobriu que pelo menos 19 outros parentes têm a mesma condição, fora os que moram longe e ele desconhece. A seguir, Leandro conta sua história:

"Eu, meus irmãos e primos somos todos parecidos. Quando éramos bebês, não dava para perceber, mas depois dos 3, 4 anos de idade, todo mundo achou isso estranho. Fomos levados para fazer exames na Santa Casa de São Paulo e uma médica descobriu a síndrome de Hunter.

Percebemos que meu avô e os irmãos dele também tinham, eram todos parecidos. Minha irmã tem filhos gêmeos, hoje com 15 anos, e eles também têm a doença.

Isso vem de longe. Pelo que me falaram, somos 19 com a mesma síndrome na família, talvez a maior família do Brasil. Mas talvez tenha mais gente, porque tem parente que nem conheço.

Quando saiu o diagnóstico, os médicos conversaram com nossos pais e disseram que a gente não tinha muita expectativa de vida, que se morre cedo dessa doença. Na época, não tinha tratamento.

Como ninguém sabia de nada, fomos criados de forma normal. Só a aula de educação física que eu não fazia, porque tinha dor e os movimentos eram devagar. Mas fora isso, não tinha mais nada. Todo mundo seguia a vida normal, trabalhando e estudando.

Perda do irmão

No começo de 2009, meu irmão mais novo, de 22 anos, começou a se sentir mal. Ele não conseguia andar direito, a barriga começou a inchar. No hospital da cidade, falavam que era virose, não quiseram saber muito dele. Mas como não passava, levamos ele em um médico particular.

Ele passou a ir todo dia ao hospital, uma semana direto, para tirar líquido da barriga. Conseguimos um encaixe para ele no Hospital das Clínicas e ele ficou quase três semanas fazendo exame, ainda tirando líquido da barriga, e descobriram um problema no coração.

Meu irmão foi transferido para o Incor (Instituto do Coração) e o médico perguntou para minha mãe se ele tinha alguma doença. Ela falou da síndrome de Hunter, e ele chamou uma médica geneticista, que não acreditava que era a síndrome, porque ele mexia as mãos e era normal.

Fizeram um exame e viram que ele tinha mesmo a síndrome. Ela convocou todos os parentes para explicar o problema dele e falou para a gente se cuidar também. Mas no tempo que meu irmão ficou internado, o coração dele não tinha mais jeito. Ele precisou fazer um transplante, mas não voltou da cirurgia.

Complicações se agravam

Nessa época, eu ainda trabalhava, mas tinha muita dor na mão, nos braços, no corpo todo. Qualquer movimento que fazia, ficava dolorido, mas nunca pensei que pudesse ser da doença. Até então, pensava que era do serviço pesado mesmo.

A partir dos 30 anos, percebi que não estava mais bem. Não conseguia andar na rua quando começava a escurecer, andava um pouquinho e já tropeçava, cansava, sentia dor demais.

Também não enxergava direito e a visão piorou demais, cada vez mais. Perdi uma parte da visão e hoje uso óculos, mas à noite não saio de casa porque tenho medo de sair 'trombando' nas coisas.

mps - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Leandro, no centro, com os primos Marcelo (esq.) e André (dir.)
Imagem: Arquivo pessoal

Em 2014, conhecemos a Casa Hunter, que de lá para cá ajudou a gente e rapidinho conseguiram remédio para um e para outro da família, mas o meu demorou muito.

Acabei me aposentando porque descobriram um problema na minha coluna também. Estou esperando vaga para fazer uma cirurgia para descomprimir a medula.

Acesso a medicamento por pesquisa clínica

MPS - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Leandro durante tratamento da MPS 2
Imagem: Arquivo pessoal

Em 2018, conseguiram me colocar em uma pesquisa de um remédio novo, que estou tomando até hoje no IGEIM (Instituto de Genética e Erros Inatos do Metabolismo). No primeiro ano, mudou tudo: disposição, não tenho mais cansaço, os órgãos que estavam grandes, como baço e fígado, voltaram rapidinho ao tamanho normal.

Todo ano eu faço uma bateria de exames. Na última que fiz, a médica falou que o coração estava do mesmo jeito do ano passado, então o remédio está mantendo tudo em ordem, não está piorando.

Mas tem coisas que o remédio não adianta, como a compressão da medula e a visão. O médico tinha falado que, nessa doença, a gente não recupera o que perdeu."

Sobre as mucopolissacaridoses

A síndrome de Hunter é uma doença genética rara que tem maior prevalência em homens. Ela faz parte de um grupo de doenças chamadas mucopolissacaridoses, ou apenas MPS, que ocorrem por um erro inato do metabolismo.

Funciona assim:

Nosso organismo produz continuamente os mucopolissacarídeos —ou glicosaminoglicanos—, substâncias que desempenham diversas funções no corpo.

Elas precisam ser recicladas constantemente por enzimas específicas, senão elas se acumulam no corpo.

No caso das mucopolissacaridoses, tem 12 enzimas que fazem esse trabalho, mas se uma delas falha, esse material se aglomera, causando danos ao organismo.

"As MPS são hereditárias no sentido de que pessoas na família carregam o gene que pode levar àquela condição, mas ela só acontece quando tem outro gene (com a mutação)", explica o geneticista Roberto Giugliani, do Hospital das Clínicas de Porto Alegre.

Existem diferentes tipos e subtipos de MPS —a síndrome de Hunter é uma mucopolissacaridose tipo 2—, que se diferenciam pela enzima e questão genética afetada:

  • MPS I: síndrome de Hurler, síndrome de Hurler-Scheie, síndrome de Scheie
  • MPS II: síndrome de Hunter
  • MPS III: síndrome de Sanfilippo
  • MPS IV: síndrome de Morquio
  • MPS VI: síndrome de Maroteaux-Lamy
  • MPS VII: síndrome de Sly
  • MPS IX: deficiência de Hialuronidase.

Cada uma delas se manifesta de uma forma diferente: há casos muito graves e outros mais atenuados. Pode haver dano neurológico ou não, complicações nos ossos, fígado e na respiração.

"O usual é que tenha quadro grave, diagnóstico no segundo ano de vida, que pode levar a óbito na segunda década de vida", diz Giugliani.

Em outros casos, o diagnóstico é mais tardio e a doença progride lentamente, sem nem aparentar que existe, como no caso de Leandro num primeiro momento.

Na família dele, conta-se a história de que, no passado, houve um casamento entre parentes para não dividir a herança. Segundo Giugliani, é muito comum ver que uma pessoa com alguma MPS tem pais consanguíneos, pois a união aumenta o risco de ambos terem o gene alterado.

"Mas não é o caso na MPS 2", ressalta o médico. "A criança vai receber gene alterado da mãe e o risco de transmitir é igual independente do pai, se é da família ou não." Além disso, a mutação que leva às MPS também pode surgir espontaneamente.

Tratamento para mucopolissacaridose

Atualmente, há tratamento para cinco tipos de MPS (tipos 1, 2, 4A, 6 e 7), que estão incorporados ao SUS. Para as demais, e mesmo para as que já têm como tratar, há drogas experimentais em desenvolvimento.

"Mas ter tratamento não significa que vai resolver todos os problemas", comenta Giugliani. Ele exemplifica com a própria síndrome de Hunter, em que o medicamento não ultrapassa uma barreira protetora no cérebro para atacar os problemas neurológicos.

Mas agora, o médico coordena uma pesquisa que testa um medicamento que conseguiu ultrapassar essa barreira e atua no sistema nervoso central do paciente. Trata-se de uma terapia para MPS 2 desenvolvida no Japão, que o médico foi conhecer e propôs a pesquisa no Brasil. O estudo clínico começou em 2018.

Os resultados ainda são preliminares e mostram que o nível de mucopolissacarídeos no sistema nervoso central diminuiu, o que leva a benefícios clínicos, como os vistos em Leandro. Agora, espera-se ampliar as pesquisas para conseguir a aprovação do medicamento. Mas há desafios.

"Por serem doenças raras, gera pouco interesse dos laboratórios. Tinha de ter mecanismos que pudessem estimulá-los a trabalhar com isso e ter uma espécie de aprovação acelerada, condicional, para não deixar as crianças com doença progredindo dia a dia", comenta o pesquisador.