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Saúde

Sintomas, prevenção e tratamentos para uma vida melhor


'Ninguém no mundo foi diagnosticado com a doença que tenho'

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Imagem: Freepik

Camila Corsini

De VivaBem, em São Paulo

11/04/2023 04h00

Ana Silva (nome fictício), professora universitária aposentada, 64, é a única pessoa diagnosticada no mundo com NLRC4 autoinflamatória.

Os sintomas, comuns em outras doenças, a acompanharam por mais de 60 anos até a confirmação da alteração genética rara. Muitas vezes, as infecções urinárias recorrentes, febres e dores nas articulações foram confundidas com outros diagnósticos —ela chegou a tratar como malária.

Em momentos de crise, a situação de Ana era incapacitante e ela chegou a passar longos períodos na cama. A VivaBem, Ana contou sobre a saga até a descoberta da sua doença e como é viver sabendo que tem um diagnóstico único no mundo.

"Primeiro, fiz uma bateria de exames e testes no Brasil. Eles deram alterados. Depois, coincidiu que meu médico estava trabalhando na Itália e tive a oportunidade de ser atendida em Genova. Fiz todos os exames novamente e eles deram o mesmo resultado. Foi muito desgastante.

Recebi o diagnóstico no consultório. Quando veio o sequenciamento genético, o doutor falou o resultado. Fiquei sem entender. É muito difícil você ter esperanças com uma doença rara. São vários problemas no diagnóstico, no tratamento, na inclusão social.

a - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Problemas nas articulações faziam parte da rotina de Ana*
Imagem: Arquivo Pessoal

Minha primeira pergunta foi: 'Como vai ser tratado?' E descobri que era com uma droga que custa mais de R$ 50 mil por dose.

Consegui judicializar meu plano de saúde e o convênio cobre meu remédio. Era isso ou tentar pelo SUS.

Hoje, tomo uma dose a cada 15 dias. No final de novembro, fiz uma cirurgia na coluna e precisei parar de tomar. Desandou tudo de novo, agora que estou me recuperando. É duro saber que você depende de uma medicação para ficar bem.

Saber que sou a única pessoa no mundo com uma doença me traz insegurança. Eu trabalhei com ciência e farmacologia. Sei como é bom saber que existem evidências científicas de que um tratamento dá certo. No meu caso, não tem.

Não existem vantagens de ser a única. Cada dia é uma surpresa que pode não ser muito agradável. Mas, com a medicação, dá um alívio.

Iniciei o tratamento há quatro anos e, nos últimos três, minha qualidade de vida foi resgatada. Não tive mais infecções, nem problemas oculares e a articulação estabilizou. Não é que os problemas não existam mais, mas eles se tornaram viáveis de conviver. Mas não posso parar de tomar.

Agora, tenho que enfrentar coisas decorrentes de tratamentos inapropriados que fiz com antibióticos e outras drogas fortes. Tudo isso gerou uma consequência, teve um grande prejuízo funcional que estou colhendo.

Tenho problemas na função renal e não sei até que ponto que as frequentes inflamações na bexiga e no rim ocasionaram isso.

Como tudo começou

Tinha febre desde os seis meses. Depois, chegaram outros sintomas: dor, inflamação nos olhos, nas articulações, no trato urinário.

Até os 50 anos, as crises eram confundidas com infecções urinárias, vaginites, problemas gastrointestinais e problemas nas articulações que respondiam a tratamentos com anti-inflamatórios e corticoides. Depois dos 50, as coisas ficaram mais complicadas. As crises aumentaram muito e tive que buscar um diagnóstico para um tratamento diferente.

Acredito que os momentos mais difíceis foram quando meus filhos eram pequenos. Trabalhava como professora universitária. Tive que ficar períodos longos de cama —um, dois, três meses.

Você vê a vida passar e os filhos precisarem de você, pede para os colegas te substituírem, vê seu laboratório parar esperando você melhorar. Tenho essas lembranças como as piores. E foram vários períodos em que isso aconteceu, de parar tudo e não dar conta de fazer mais nada.

A incerteza do amanhã, de você assumir compromissos de trabalho e familiares, é brutal e te arrebenta.

Você não sabe nunca se pode contar com o seu corpo. Vira e mexe tem que desmarcar alguma coisa, remanejar. Ninguém está pronto para lidar com isso, porque impacta a vida das pessoas. Você acaba sendo um peso.

No meu caso, eu sou a única no mundo com essa doença. Imagina, para médico e paciente, saber que não existe outra pessoa com as mesmas condições e tudo ainda precisa ser testado.

Essa é uma doença genética e meus filhos optaram por não testar. O mais novo tem duas filhas e fico muito preocupada com qualquer febre.

Qualquer coisa que elas têm já fico em alerta. É muito difícil me controlar. Eu tenho os dois genes recessivos, do meu pai e da minha mãe. Então, é provável que meus filhos carreguem um recessivo."

Sobre a doença de Ana

Por definição, uma doença é considerada rara quando atinge cerca de 65 pessoas a cada 100 mil. Ana é a única pessoa diagnosticada com a doença autoinflamatória recessiva associada ao gene NLRC4.

Esse gene está relacionado à imunidade inata das pessoas, então atua na linha de defesa do organismo —a "primeira resposta" do corpo a um estímulo estranho. Logo, uma doença relacionada a ele impactaria na capacidade do corpo de combater certos tipos de bactérias.

"O NLRC4 é responsável por montar uma estrutura chamada inflamassoma, que é capaz de reconhecer germes com flagelos. E as infecções da Ana sempre eram causadas por germes flagelados", explica Leonardo Mendonça, coordenador da Unidade de Doenças Raras e da Imunidade do Hospital Nove de Julho, da Dasa, na capital paulista. Ele é o imunologista que cuida de Ana.

Leonardo explica que o processo de descoberta da doença de Ana foi longo e durou cerca de cinco anos. Em uma de suas muitas internações, para tratar uma infecção urinária, o médico responsável por Ana acionou a Unidade de Doenças Raras coordenada por ele.

"Ela tinha infecções recorrentes, dor abdominal, febre. Sintomas que passaram desapercebidos por muitos anos, porque simulam outras doenças. O que chamou a atenção foi justamente a frequência e a repetição, que é atípico. Não era um quadro de doença de imunidade normal", completa Leonardo.

Quando a alteração de Ana foi identificada, depois do sequenciamento de seu código genético, a equipe de Leonardo consultou a frequência em bancos de dados mundiais, como o gnomAD.

Lá, vimos que não existia uma doença daquela mutação e começou a saga para provar que aquilo causava o que a gente via na paciente.

Foi neste momento que a equipe precisou da colaboração de outros países, como a Itália, porque eram necessárias tecnologias que o Brasil não tinha. Eles simularam, em laboratório, o que provavelmente acontecia no organismo de Ana.

Com essas análises, foi possível também chegar a um tratamento. Hoje, a cada 15 dias, Ana utiliza uma dose de um remédio chamado canaquinumabe. Ele já estava aprovado pela Anvisa para o tratamento de outras doenças autoinflamatórias.

"Às vezes, o paciente se sente um ratinho de laboratório. Infelizmente, não conseguimos separar ciência, pesquisa e doença rara. Para a gente entender o que acontece e aplicar com assertividade e coerência, precisamos fazer isso", pondera o médico.

De acordo com David Schlesinger, doutor em genética pela USP e CEO da Mendelics, a associação entre variantes genéticas e doenças depende de pesquisas, extensa comunicação através da literatura científica e bancos de dados genéticos e médicos.

Para ele, a descoberta dessa doença autoinflamatória pode ajudar a identificar outros casos no mundo que apresentam características semelhantes e que até agora tinham diagnóstico indefinido.

"Ser a primeira pessoa conhecida com a doença no mundo não quer dizer que é a única. É tudo uma questão de tempo", finaliza Schlesinger.