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Coronavírus: como a China está impulsionando sua questionada medicina tradicional na pandemia

O governo chinês viu a pandemia da covid-19 como uma oportunidade para tentar internacionalizar a medicina tradicional do país - Getty Images
O governo chinês viu a pandemia da covid-19 como uma oportunidade para tentar internacionalizar a medicina tradicional do país Imagem: Getty Images

Pratik Jakhar - Da BBC Monitoring

04/07/2020 19h37

A pandemia de covid-19 deu um novo impulso aos esforços da China para internacionalizar sua medicina tradicional.

Ao mesmo tempo em que várias equipes científicas ao redor do planeta tentam desenvolver uma vacina contra o novo coronavírus, Pequim vem promovendo o uso da medicina tradicional chinesa para tratar pessoas infectadas.

Um documento publicado recentemente pelo governo chinês diz que 92% dos casos de covid-19 no país haviam sido tratados com esse tipo de medicina.

A medicina tradicional chinesa é uma das práticas médicas mais antigas do mundo e inclui uma ampla gama de tratamentos, de misturas de ervas a acupuntura e Tai Chi.

É muito popular na China, sem distinções geracionais, embora seu uso seja ocasionalmente objeto de intenso debate na Internet.

Especialistas dizem que a China está tentando expandir a atratividade da sua medicina tradicional dentro e fora de suas fronteiras. No entanto, muitos profissionais treinados na medicina ocidental são céticos quanto à sua utilidade.

Eficácia sob suspeita

A Comissão Nacional de Saúde da China possui um capítulo especial sobre a medicina tradicional em suas recomendações para o tratamento do coronavírus, e a imprensa oficial tem destacado seu suposto papel na resposta a epidemias anteriores, como a de Sars, em 2003.

Seis remédios da medicina tradicional chinesa foram anunciados como tratamento para a covid-19. Os dois mais importantes são Lianhua Qingwen, que contém 13 ervas como Forsythia suspensa e raiz de ouro (Rhodiola rosea), e Jinhua Qinggan, que foi desenvolvido durante o surto de H1N1 em 2009 e é formado por 12 componentes, incluindo hortelã, alcaçuz e madressilva.

Os defensores da medicina tradicional chinesa argumentam que seu uso não tem consequências negativas, mas os especialistas dizem que é necessário um exame científico rigoroso antes que esses tipos de remédios possam ser considerados seguros.

O Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos afirmou que, embora a medicina tradicional chinesa possa ajudar a aliviar os sintomas da covid-19, sua eficácia geral contra o coronavírus não está comprovada.

"Não há evidências sólidas para a medicina tradicional chinesa e, portanto, seu uso não apenas não é justificado, mas também perigoso", disse recentemente Edzard Ernst, pesquisador de medicinas alternativas, à revista Nature.

Apesar disso, a medicina tradicional chinesa continua a crescer no seu país de origem, e há uma demanda crescente por ela no mercado internacional.

O governo chinês estimou no ano passado que a indústria da medicina tradicional poderia chegar a US$ 420 bilhões (R$ 2,2 trilhões) até o final de 2020.

O presidente chinês, Xi Jinping, é considerado um "verdadeiro fã" dessa prática antiga, que ele chamou de "tesouro da civilização chinesa".

Yanzhong Huang, pesquisador sênior de saúde pública do Council on Foreign Relations, um centro de estudos em Washington, nos Estados Unidos, observa que "questões de eficiência e segurança afetam o setor da medicina tradicional chinesa e que a maioria dos chineses ainda prefere a medicina moderna".

O Instituto Nacional Chinês para Controle de Alimentos e Medicamentos encontrou toxinas em algumas amostras de produtos usados na medicina tradicional no ano passado.

Poder

Apesar dos esforços persistentes de Pequim para internacionalizar a medicinal tradicional chinesa, muitas pessoas fora da China ainda não a conhecem.

Os críticos dizem que a China está usando a pandemia como forma de promovê-la no exterior, algo que a imprensa oficial nega.

No entanto, a China tem enviado suprimentos e especialistas em medicina tradicional chinesa, junto com medicamentos e equipamentos convencionais, para a África, Ásia Central e Europa.

"Estamos prontos para compartilhar a 'experiência chinesa' e a 'solução chinesa' para o tratamento da covid-19 e informar mais países, entender e usar a medicina chinesa", disse Yu Yanhong, uma das principais pessoas responsáveis pela Administração Nacional de Medicina Tradicional Chinesa.

Huang acredita que a promoção da medicina tradicional chinesa no exterior equivale a impulsionar o "soft power" da China, ou seja, a capacidade de persuasão e atração da China.

"A narrativa oficial que apresenta a medicina tradicional chinesa como eficaz contra a covid-19 também serve para promover a superioridade da abordagem anticovid-19 da China, numa época em que os esforços ocidentais parecem ser ineficazes em conter a propagação do vírus", ele apontou.

O alcance internacional da medicina tradicional chinesa aumentou no ano passado depois que a Organização Mundial da Saúde (OMS) a reconheceu formalmente, após anos de esforços e lobby da China. A decisão foi criticada pela comunidade médica internacional.

A OMS foi então envolvida em uma polêmica após remover avisos sobre o uso de remédios tradicionais para tratar a covid-19 em suas recomendações nos idiomas inglês e chinês.

A falta de padrões e a ausência prática de estudos clínicos dificultaram a ampla adoção desse tipo de medicina.

Em maio, autoridades suecas testaram amostras de Lianhua Qingwen e descobriram que elas continham apenas mentol.

Além dessas controvérsias, a covid-19 colocou em evidência os vínculos dessa indústria com o comércio de animais silvestres.

A Comissão Nacional de Saúde da China foi criticada após recomendar injeções contendo pó de bile de urso como tratamento para o coronavírus. Pequim proibiu recentemente o uso de pangolins, uma espécie ameaçada cujas escamas são usadas na medicina tradicional.

Os defensores da vida selvagem estão preocupados com o fato de a crescente popularidade da medicina tradicional chinesa levar a um aumento no tráfico ilegal de vida selvagem.

"Mesmo que essas espécies ameaçadas tenham algum valor como tratamento, devemos usar plantas como alternativas nas práticas da medicina tradicional chinesa", disse à BBC Lixing Lao, professor honorário da Faculdade de Medicina da Universidade de Hong Kong.

Enquanto isso, alguns esforços da imprensa oficial e das autoridades para promover a medicina tradicional chinesa parecem ter saído pela culatra.

Funcionários da província de Yunnan despertaram raiva do público em março, depois que foi relatado que estudantes eram obrigados a tomar uma sopa de medicamento tradicional como pré-requisito para voltar à escola.

Mais recentemente, um rascunho de uma regra em estudo pelo governo da cidade de Pequim, que visa punir as pessoas que "difamavam" a medicina tradicional chinesa, atraiu duras críticas online.

"A ciência pode resistir ao questionamento. Se a medicina tradicional chinesa não pode ser questionada, então, a medicina tradicional chinesa não é ciência", comentou um usuário do Weibo.

Lao acredita que a única maneira de a medicina tradicional chinesa ser aceita globalmente é "por meio de evidências científicas, e não por meio de propaganda".