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'Nem covarde, nem herói': livro aborda luto de quem perde ente por suicídio

Luciana Rocha e Marden - Arquivo pessoal
Luciana Rocha e Marden Imagem: Arquivo pessoal

Colunista do UOL

18/08/2022 04h00

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"Escrevi com o intuito de ser um livro leve". A declaração da autora pode causar surpresa quando a gente sabe que o livro "Nem covarde, nem herói: amor e recomeço diante de uma perda por suicídio", lançado esta semana pela Editora Gulliver, é sobre o suicídio. E não qualquer suicídio, mas o do próprio marido, aos 47 anos.

A psicóloga mineira, hoje com 48 anos, tinha então 41 e um casamento feliz de 15. Decidiu contar sua história como uma declaração de amor a Marden, que ela chama de "Salabim", pai de seus dois filhos, na época com 5 e 11 anos. E também para compartilhar o que aprendeu sobre o tema que continua o maior dos tabus em torno da morte.

Depois da perda do marido, mergulhou nos estudos e se especializou em tanatologia e suicídio. Tem hoje o consultório repleto de pacientes sobreviventes, como são chamados os familiares enlutados por mortes autoimpostas, ou os autores de tentativas malsucedidas de tirar a própria vida. Sabe agora, mais que nunca, que se fala muito pouco sobre o assunto, mistificado por nos aterrorizar, o que o torna ainda mais difícil de compreender, prevenir e lidar com o rastro de dor que deixa pelo caminho.

Mas e o livro "leve"? Se pensarmos na leveza que o assunto permite, é sim leve e delicada a forma como Luciana o expressa. Não por acaso, o subtítulo fala em amor e recomeço e traz uma mensagem redentora para quem vivencia o luto por alguém amado: "Não permita que lhe roubem a história de quem morreu por suicídio". A forma da morte não pode nem deve estigmatizar quem morreu, reduzindo a pessoa ao seu gesto final. "Não é justo com quem partiu, nem com quem ficou ", diz Luciana.

Contar a sua história, como fez em seu livro, foi a maneira que encontrou de romper esse estigma. Na verdade, muitos estigmas. Como estudiosa do tema, sabe que não há uma única causa para o ato de tirar a própria vida. O suicídio é multifatorial e resultado de uma ou mais doenças mentais, que podem ou não estar diagnosticadas quando a pessoa se suicida. Quando esse conceito fica claro, muitos mitos caem por terra.

As pessoas confundem gatilhos com causa e dizem, sem pensar, que a pessoa se matou porque terminou um relacionamento amoroso, perdeu o emprego, sofreu assédio ou bullying. Ao entender que é necessária uma combinação de fatores externos e internos para provocar o sofrimento gigante que pode levar ao suicídio, muda o nosso olhar sobre quem morreu e quem ficou.

Em seu livro, Luciana conta como ela e o marido se conheceram, se apaixonaram e se casaram. Conta como ele sempre foi charmoso, gentil e divertido. Cheio de ideias criativas, amava festas, cantar e dançar. Eram os dois amorosos e presentes com os filhos e tinham os pais e muitos amigos por perto. Trabalhavam e viviam uma vida normal. Então, por quê?

Como a gente não sabe responder, julga (mal) as famílias em que ocorre um suicídio. Por total desconhecimento dos muitos meandros do adoecimento mental, imagina-se que o potencial suicida viva em um ambiente nocivo, sombrio e disfuncional. Condena-se quem estava perto, cônjuges, pais, irmãos, por negligenciar os supostos sinais de alerta. E se acusa quem tirou a própria vida de egoísta, de não pensar em quem o amava.

Livro 'Nem covarde, nem herói' - Divulgação - Divulgação
Livro 'Nem covarde, nem herói'
Imagem: Divulgação

Todas essas suposições estão equivocadas. Famílias muito harmônicas podem estar convivendo com alguém cujo estado mental o levará a um gesto extremo. O sentimento mais comum entre os enlutados sobreviventes é o de surpresa. "Nunca poderíamos imaginar", ouço com frequência na clínica", diz Luciana. O dia da morte, como relata em seu livro, é quase sempre "um dia normal". "O dia do suicídio do meu marido foi totalmente normal, até a hora em que fui dormir. Eu vivencio casos que mostram isso: pessoas tomaram providências prosaicas como pedir um almoço e se matarem em seguida".

Isso não significa que o suicídio não foi planejado. A não ser no caso de um surto psicótico causado por uma doença como esquizofrenia, por exemplo, há um plano prévio. Mas até o momento final, não há exatamente uma hora definida. "Ela já planejou, está sofrendo demais, mas não quer morrer. Segue a vida enquanto suportar." Os tais sinais que as pessoas custam a acreditar que não foram percebidos são, na grande maioria dos casos, imperceptíveis para um leigo. "As pessoas são capazes de disfarçar muito bem e muitas vezes se recusam a pedir ajuda. Daí a importância de se cuidar sempre da saúde mental, de cuidar dos aspectos psicológicos como cuidamos dos físicos."

No caso de Marden, a partir do que aprendeu depois da sua morte, Luciana identificou algo de bipolar no seu comportamento, uma doença que ele subestimou e descuidou. "Hoje, depois de estudar o assunto, identifico nele características que o classificariam como um suicida potencial. Ele tinha o que chamamos de depressão sorridente. Sabe-se que 100% das pessoas que se suicidam tem um ou mais transtornos psicológicos. E meu marido tinha esses fatores de risco."

Entender melhor o suicídio não vai tirar a dor da perda, mas vai aliviar a culpa de quem ficou e o julgamento injusto de quem tirou a própria vida. "Outra frase que eu ouço muito no consultório é 'Como ele fez isso comigo?'. É um sentimento legítimo, que tem que ser colocado para fora, mas a verdade é que, em seu adoecimento, em que alguém só vê desesperança e dor, não há a percepção de estar fazendo mal a ninguém. A questão é que a pessoa está doente. Há uma alteração cognitiva no cérebro dela. Ela não está agindo em sã consciência. A doença mental, se não tratada, pode ter esse triste fim, sim. Da mesma forma como há outros tipos de doenças que, se não são tratadas a tempo, podem levar à morte. Por isso precisamos desmistificar a saúde mental", afirma Luciana.

"Falar sobre suicídio é tão importante que eu já cheguei a querer conscientizar todos com quem eu conversava. Do motorista do Uber à diretora da escola. Daí a importância de um programa nacional de conscientização e prevenção do suicídio. Hoje temos o Setembro Amarelo, que apesar de ser um grande passo para esse trabalho, ainda tem pontos fracos como a divulgação de informações erradas que causam mais sofrimento entre os sobreviventes. Uma dessas desinformações é a de que 90% dos suicídios poderiam ser evitados. Não é verdade. Não há nada que confirme essa estatística exagerada.

O livro "Nem Covarde, Nem Herói" ajuda a informar e quebrar tabus. A começar pelo tabu do silêncio, da vergonha, da culpa e, principalmente, da doença mental, essa sim a grande e negligenciada responsável por tantas perdas e sofrimento que poderia ser evitado.

Procure ajuda

Caso você tenha pensamentos suicidas, procure ajuda especializada como o CVV (www.cvv.org.br) e os Caps (Centros de Atenção Psicossocial) da sua cidade. O CVV funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados) pelo telefone 188, e também atende por e-mail, chat e pessoalmente. São mais de 120 postos de atendimento em todo o Brasil.