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Vamos Falar Sobre o Luto?

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Uma Questão de Vida e Morte': amor, perda e o que realmente importa no fim

Uma história de amor que nos ajuda a pensar sobre a vida e a morte - Divulgação/Editora Planeta
Uma história de amor que nos ajuda a pensar sobre a vida e a morte Imagem: Divulgação/Editora Planeta

Colunista do UOL

01/07/2022 04h00Atualizada em 01/07/2022 11h54

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A coluna "Vamos Falar Sobre O Luto", no VivaBem, tem me estimulado a ler um livro por mês sobre o assunto viver e morrer. Foi assim que cheguei ao livro "Uma Questão de Vida e Morte", da Editora Planeta/Paidós, escrito pelo casal Irvin e Marilyn Yalom.

Ele, 88, é professor de psiquiatria na Universidade Stanford e respeitado autor de livros, como o best seller "Quando Nietzsche Chorou". Marilyn, 87, também foi autora e pesquisadora de gênero no Instituto Clayman, em Stanford.

Juntos, eles escrevem sobre o diagnóstico de um câncer terminal da Marilyn, a vivência de um ano no enfrentamento da doença e, por fim, o luto de Irvin após a partida do seu amor de adolescência e da vida inteira.

Seria uma história comum de um casal que passou praticamente a vida toda junto e que a vida agora insiste em separar. Mas o que torna esse livro especial são vários fatores, entre eles a capacidade do autor de colocar sua trajetória de psiquiatra, que cuidou do luto de outras pessoas, aplicada a sua própria vida.

Craque em falar sobre as dores do mundo a sua volta, Irvin se dedica a trazer, com enorme beleza, a sua própria dor do luto. Também é especial porque, mais uma vez, mostra o poder da escrita na cura do luto. Esse livro foi um suporte emocional enorme para o casal passar por essa jornada de vida, morte e luto.

Irvin e Marilyn Yalom - Divulgação/Editora Planeta - Divulgação/Editora Planeta
Irvin e Marilyn Yalom
Imagem: Divulgação/Editora Planeta

Por fim, o livro traz também um profundo questionamento sobre a vida após os 80 anos. O casal, com um grande legado familiar, intelectual e autoral, depara-se com um momento de vida em que a morte é uma visita constante. Ele, ao mesmo tempo, lida com sua perda e com sua própria finitude de uma forma emocionante, verdadeira e poética.

Um texto de amor, em primeiro lugar, como representa a frase que abre o livro: "O luto é o preço que pagamos por ter coragem de amar os outros". Nós, do "Vamos Falar Sobre O Luto", acreditamos muito nisso, que o luto é amor puro em forma de saudade.

Em seu livro de 1980, "Psicologia Existencial", Irvin afirmou que é mais fácil enfrentar a morte se você tiver poucos arrependimentos na vida. Esse é o caso dele e Marilyn, que dizem ter muito pouco a lamentar quando pensam em sua longa vida juntos. Mas isso infelizmente não consegue amenizar a batalha cotidiana com a doença de Marilyn, muito menos a dor da ideia da separação. Isso fez com que se perguntassem: como podemos viver de forma significativa até o fim?

Irvin e Marilyn Yalom - Divulgação/Editora Planeta - Divulgação/Editora Planeta
Imagem: Divulgação/Editora Planeta

A intenção dos dois autores, ao escrever "Uma Questão de Vida e Morte", foi encontrarem um jeito, juntos, que os ajudassem a navegar até o fim da vida. Através desse objetivo pessoal, eles acabam falando também com toda a população desse mundo que tanto teme a morte e que deseja, acima de tudo, ter "o melhor atendimento médico disponível, encontrar apoio emocional na família e amigos e morrer da forma mais indolor possível".

Uma questão pouco falada também é bastante discutida no livro: "Quanto estamos dispostos a suportar para permanecermos vivos? Como podemos terminar nossos dias da forma mais indolor possível? Como podemos, delicadamente, deixar esse mundo para a próxima geração?". A difícil escolha de Marilyn por uma morte assistida é parte importante de sua partida e está revelada no livro com todos os seus detalhes.

Muitos são os sentimentos que emanam dessa leitura. A consciência de que a morte de uma pessoa amada fragiliza a nossa própria existência. A alternância entre o terror e a tranquilidade frente à morte iminente. A gratidão por uma vida de amor vivida intensamente. A tentativa de fugir da raiva e alcançar o entendimento. A crença de Marilyn de que um jeito de não morrer é conseguirmos nos propagar na vida daqueles que nos conheceram, como escreveu São Paulo: "Ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria". É ele, o amor, o maior companheiro da vida e da morte.

Irvin e Marilyn Yalom - Divulgação/Editora Planeta - Divulgação/Editora Planeta
Imagem: Divulgação/Editora Planeta

Junto com a doença de Marilyn, Irvin lida também com o luto da aposentadoria. Após mais de 60 anos como psiquiatra, agora resolveu atender pessoas por apenas uma sessão. Não quer estabelecer relações duradouras de trabalho porque não sente segurança para projetar o futuro nesse seu momento de vida. Além disso, lida com a perda de memória, algo que o perturba e o fragiliza no exercício da profissão.

Sempre ajudado pela memória preservada da Marilyn, agora Irvin está prestes a perder não só o seu amor da vida como também sua memória em tantos momentos. Marilyn é o arquivo das viagens e de suas experiências de vida e, sem ela, muitas delas se apagarão.

Ele também apresenta questões de falta de equilíbrio e problemas cardíacos, já tendo a ajuda de um marca-passo para dar ritmo ao seu coração. Essa consciência faz com que o autor passe não apenas pela doença de Marilyn como também pela sua própria finitude, que ele imagina próxima. Mas é importante fazer a distinção: em vários momentos do livro, Irvin conta que o que o angustia mesmo é a ideia de viver sem a Marilyn, e não a sua partida, com a qual ele diz não se assustar.

É estranho para o autor imaginar que ele, que hoje é detentor das memórias de tantos indivíduos mortos como seu pai, mãe, irmã, companheiros de brincadeiras, amigos e pacientes, tem agora a perspectiva de representar as memórias do amor da sua vida: "Eu sozinho os mantenho vivos".

Irvin e Marilyn Yalom - Divulgação/Editora Planeta - Divulgação/Editora Planeta
Imagem: Divulgação/Editora Planeta

O sentimento da solidão é uma realidade para ele. Apesar de reconhecer a importância de ter quem os ama por perto, a solidão é inevitável: "A tarefa de suportar essa solidão fundamental parece esmagadora". A solidão da separação daquelas duas "metades" que, durante a vida toda (desde adolescentes), se apoiaram, levantaram e dormiram juntos, viveram cada dia o conforto da certeza de um amor infinito e definitivo. Embora cercado de amor, a solidão dessa perda existencial permanece.

Como parte desse questionamento de vida e morte, o autor passa a reler os livros que escreveu e a relembrar passagens de um trabalho que realizou por muitas décadas, desde os anos 1970, quando manteve grupos de terapia com enlutados. Todas aquelas histórias parecem se aplicar a sua vida nesse momento.

Ele se lembra, por exemplo, de uma entrevista com uma paciente em luto que perdeu uma amiga querida e desenvolveu uma ansiedade incapacitante sobre a morte. Ele pergunta o que ela mais teme sobre a morte e a resposta é: "Todas as coisas que eu não teria feito". Irvin discorre sobre sua crença de que existe uma correlação positiva entre a ansiedade em relação à morte e a sensação de uma vida não vivida. Em outras palavras: quanto mais não vivida sua vida, maior sua ansiedade sobre a morte. Por trás dessa crença existe o chamado: viver bem o hoje.

Os amigos foram grandes companheiros da jornada da doença da Marilyn. Mesmo muito fragilizada pelo câncer, ela escrevia cartas para os amigos e se programou para receber grande parte deles. Essa experiência trouxe, além de um grande cansaço, o sentimento de missão cumprida: despedir-se de cada um deles que teve um papel importante em sua vida.

Em uma ocasião especial, ela imaginava que iria receber a visita de uma amiga, que chegou com outras 20 para entregar um livro de edição limitada que fizeram especialmente para ela, chamado "Cartas para Marilyn". Um livro contendo cartas de cada uma delas, falando sobre a influência de Marilyn em suas vidas. Ao final dessa visita, a autora define a tarde com a frase: "Foi um dia lindo, do tipo que guardarei para o resto da vida, por mais longo ou curto que seja."

Enquanto Irvin se debate com a iminente partida de Marilyn, ela, por sua vez, foi chegando a um acordo com a morte. Ela conta que há duas coisas na escrita do marido que a influenciaram como agora ela via a morte: a primeira é a que ele escreve sobre a vida não vivida. Ela se diz "uma das sortudas que morrerá sem arrependimentos e, portanto, será mais fácil enfrentar a morte".

A segunda coisa mencionada por Irvin é a frase de Nietzsche "Morra na hora certa", que a faz se perguntar: qual é a minha hora certa de morrer? E sua resposta para si própria: "Se eu tivesse 40, 50 ou 60 anos, seria uma tragédia, mas agora, para mim, a morte é uma realidade inevitável. Afinal, tenho 87 anos e tive uma vida ótima". Com esse pensamento, Marilyn escolheu partir e sua família acatou sua vontade, acompanhando-a com amor em sua despedida.

Após a partida de Marilyn, Irvin passa a viver o luto, alternando momentos em que consegue se confortar com os aprendizados profissionais da vida inteira e a realidade que o coloca frente a sua própria dor desgovernada. O início é enfrentar a vida "como um adulto independente e sozinho".

No processo de se apropriar de sua nova vida e seu luto, ele experimentou o choque inicial, um abismo de tristeza, uma depressão nunca experimentada, inércia e desesperança. Acaba o livro quatro meses depois da morte de Marilyn, com uma linda carta para ela, agradecendo a vida e preparando-se para o que passou a ser, para ele, seu reencontro com Marilyn: "Tenho certeza de que estou chegando ao fim da minha vida e, no entanto, estou tendo um surto de paz de espírito. Agora, quando penso na morte, a ideia de juntar-me a Marilyn me acalma".

Para finalizar o livro, o autor empresta um pensamento de Nabokov em sua autobiografia: "O berço balança acima de um abismo, e nosso bom senso nos diz que nossa existência é apenas uma breve fenda de luz entre duas eternidades de escuridão". E conclui: "Essa imagem cambaleia e acalma. Eu me inclino para trás na cadeira, fecho os olhos e me consolo". Que você siga forte Irvin e inspirado pelo amor único que construiu e viveu com sua Marilyn.