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Blog da Sophie Deram

OPINIÃO

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Fermentação natural melhora qualidade de pães com ou sem glúten

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

25/06/2021 04h00

O fermento natural utilizado na produção de pães, também chamado de levain, sourdough e massa madre, foi quase que totalmente substituído pelo uso do fermento biológico e agentes de fermentação química.

No entanto, além de promover sabores e aromas deliciosos e aumentar a validade de pães, tenham eles glúten ou não, a ciência tem mostrado que a fermentação natural ajuda na quebra de nutrientes que contribuem para o desencadeamento de sintomas intestinais.

Pão com fermentação natural pode ser mais gostoso, nutricionalmente adequado e durar mais

O uso de fermento natural é considerado um dos processos biotecnológicos mais antigos na produção de alimentos. Em geral, para obter um fermento natural basta adicionar farinha de trigo (ou de outro cereal) com água e esperar alguns dias até que as bactérias lácticas e leveduras comecem a agir, fermentando os carboidratos.

Uma revisão publicada na revista Foods mostrou que, além de não conter aditivos alimentares, na fermentação natural encontramos mais de 50 espécies de bactérias lácticas e mais de 25 espécies de leveduras, enquanto na fermentação biológica, geralmente, ocorre apenas uma espécie de bactéria ou levedura, como a Saccharomyces cerevisiae.

A atuação de uma variedade de micro-organismos na fermentação natural permite a ocorrência de diversos processos, como a hidrólise de proteínas da farinha, acidificação e ativação de enzimas endógenas que influenciam as características organolépticas, tecnológicas, nutricionais, funcionais e tempo de vida útil dos produtos à base de cereais, podendo melhorar:

Textura

Dependendo do nível de acidificação láctica, a fermentação natural afeta a solubilidade dos componentes formadores da estrutura do pão, como o glúten e o amido, contribui para reter gás e, assim, também para a maciez e volume da massa.

Sabor

As bactérias lácticas fermentam os carboidratos, atuam no metabolismo de compostos ricos em nitrogênio e levam à formação de substâncias voláteis que fornecem sabores e aromas característicos aos pães.

Nutrição

A fermentação natural modifica as características nutricionais dos cereais, podendo melhorar a textura e a palatabilidade do pão, estabilizar ou aumentar os níveis de compostos bioativos (como compostos fenólicos), diminuir a biodisponibilidade do amido (enquanto fornece produtos de baixo índice glicêmico) e potencializar a biodisponibilidade de minerais (pela degradação de substâncias como os fitatos, que competem com diversos nutrientes, entre eles o magnésio).

Validade

A melhora do volume e da maciez da massa pela fermentação natural tem sido associada à diminuição do envelhecimento do pão. Isso também acontece porque a acidificação pode inibir o crescimento de bactérias e bolores responsáveis pela deterioração desse alimento.

Fermentação natural de alimentos sem glúten pode beneficiar pessoas que sofrem com doença celíaca

Fala-se muito que o glúten faz mal, mas, na verdade, essa proteína, formada pela gliadina e glutenina e presente no trigo, na cevada e no centeio, só produz efeitos negativos em três situações:

  • Na doença celíaca: uma doença sistêmica de hipersensibilidade alimentar causada por uma resposta inflamatória ao glúten em pessoas com predisposição genética;
  • Alergia ao trigo: condição em que a imunidade é ativada, ocorrendo uma reação alérgica às proteínas do trigo;
  • Sensibilidade ao glúten não celíaca: incapacidade de tolerar o glúten com o desencadeamento de reações adversas, mas, diferentemente da doença celíaca, não causa danos ao intestino delgado.

Nesses três casos, uma alimentação sem glúten será benéfica. Na verdade, no caso da doença celíaca esse é o único tratamento eficaz, o que só foi observado na década de 1930 por Willem-Karel Dicke.

No entanto, ter uma alimentação sem glúten é uma tarefa desafiadora, devido a uma série de problemas relacionados à contaminação cruzada, falta de políticas claras de rotulagem dos alimentos em alguns países e má qualidade dos produtos sem glúten em comparação com seus equivalentes ricos em glúten.

A ciência e a tecnologia de alimentos têm explorado a produção de massas sem glúten (de arroz, milho, trigo sarraceno) com fermentação natural, que pode ser considerada uma ferramenta tecnológica para melhorar a textura e o sabor dos produtos sem glúten.

Produtos de panificação de cereais são atualmente produzidos com fermentação rápida, utilizando fermentos biológicos e agentes químicos em substituição à fermentação natural e lenta. Nessas circunstâncias tecnológicas, os componentes dos cereais (por exemplo, proteínas) estão sujeitos a uma degradação muito leve ou ausente, resultando, provavelmente, em alimentos menos digeríveis em comparação com os tradicionais e produzidos com fermento natural.

De fato, foi demonstrado que a aplicação da biotecnologia com fermentação natural, ainda que não elimine a ação das proteínas do trigo, cevada e centeio, é capaz de melhorar as características sensoriais, tecnológicas, nutricionais e funcionais dos alimentos sem glúten, com efeitos semelhantes aos percebidos nos alimentos convencionais.

Estudo brasileiro mostra efeitos da fermentação natural na concentração de FODMAPS

A brasileira Leidiane Andreia Acordi Menezes também tem desenvolvido um estudo envolvendo a fermentação natural. Sua tese de doutorado intitulada "Sourdough biotechnology for improving bread nutritional properties" ("Biotecnologia da fermentação natural para o melhoramento das propriedades nutricionais de pães") foi orientada pelo professor Juliano de Dea Lindner no Programa de Pós-Graduação em Ciências dos Alimentos da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina). Parte dos resultados foi publicada na revista Frontiers.

O objetivo da tese foi investigar os efeitos da fermentação natural na concentração de FODMAPS (oligossacarídeos, dissacarídeos, monossacarídeos e polióis fermentáveis), uma classe de carboidratos que estão associados ao desenvolvimento de sintomas gastrintestinais em casos de síndrome do intestino irritável (problema de saúde pouco esclarecido, mas que tem como sintomas inchaço, constipação e diarreia, podendo ter relação com o estresse) e casos de sensibilidade ao glúten não celíaca.

A pesquisadora observou que pães de trigo fermentados naturalmente apresentaram menores concentrações de FODMAPS, entre eles sacarose, frutose, glicose e frutanos (compostos orgânicos polímeros de frutose), em relação aos pães produzidos com fermentação biológica.

Assim, ela concluiu que a fermentação natural é uma alternativa para a produção de pães que podem ser consumidos por pessoas que sofrem com síndrome do intestino irritável e sensibilidade ao glúten não celíaca.

Os benefícios disso também são provenientes da proteólise na fermentação natural, que leva à quebra de várias proteínas, como o glúten, facilitando a digestão e a absorção de nutrientes. Dessa forma, ainda que aqueles que sofrem com doença celíaca não possam se beneficiar disso, quem convive com sensibilidade ao glúten não celíaca pode tolerar melhor pães e massas, ainda que contenham glúten.

Já que o processo para obtenção de um fermento natural leva tempo, esse estudo também indica a possibilidade de desenvolver fermentos com micro-organismos benéficos, variados e controlados para a produção de pães e massas de melhor qualidade e que contribuam para a saúde de pessoas.

Enquanto isso não acontece, também vale a pena exercitar a paciência, produzir seu próprio fermento natural e fazer um pão caseiro delicioso. Lembre-se: se você não apresenta nenhum problema de saúde relacionado ao glúten, não tem por que ter medo dessas proteínas. Fique em paz com a comida e coma com prazer e sem culpa!

Bon appétit!

Sophie Deram

Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferentemente do informado, a Saccharomyces cerevisiae é uma levedura (fungo) e não uma bactéria. O texto foi alterado.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL