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Blog da Sophie Deram

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Quer comer como os neandertais? Então não corte carboidratos

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

19/05/2021 04h00

No nosso imaginário, o homem pré-histórico tinha como base da alimentação um grande consumo de carne. Mas a ciência tem mostrado que essa ideia pode não ser tão verdadeira quanto pensamos.

Um grupo de pesquisadores analisou a placa bacteriana dos dentes (ou microbiota oral) de ancestrais humanos e concluiu que os neandertais, que viveram na Europa há cerca de duzentos mil anos, além de outros ancestrais que eles têm em comum com o Homo sapiens, consumiam muitos alimentos ricos em carboidratos (amido).

O amido é um carboidrato complexo presente principalmente em raízes, grãos e tubérculos, e formado pela união de diversas moléculas de glicose. O mais interessante desse estudo publicado na revista PNAS (Proceedings of the National Academy of Sciences) é mostrar que o consumo de alimentos ricos em carboidratos pelo homem pré-histórico pode ter contribuído para o desenvolvimento e expansão do cérebro dos neandertais.

Investigando a microbiota oral de homens pré-históricos

Os neandertais são homens pré-históricos conhecidos por serem carnívoros vorazes. De acordo com diversos estudos, o consumo de carne teria melhorado a alimentação dos nossos ancestrais e contribuído para o desenvolvimento do cérebro humano, que dobrou de tamanho entre 2 milhões e 700 mil anos atrás.

No entanto, vale lembrar que o cérebro é um órgão que necessita de bastante energia, portanto, é bastante plausível a descoberta de que há pelo menos 600 mil anos nossos ancestrais comiam bastante amido, e que isso foi necessário para a grande expansão de seus cérebros.

Mas também é compreensível que se dê tanta importância à carne na alimentação da Pré-História. A carne deixa mais vestígios no solo do que os vegetais, cujo consumo, em geral, é identificado pelo desgaste dos dentes em fósseis.

Diante disso, ao analisarem a microbiota oral de hominídeos africanos, incluindo os neandertais, e compará-los com a microbiota de chimpanzés, gorilas e macacos bugios, os pesquisadores adotaram um método inovador.

Eles analisaram bilhões de fragmentos de DNA de bactérias presentes nos dentes de 124 indivíduos (neandertais, humanos modernos e do período pré-agrícola, chimpanzés, gorilas e macacos bugios), permitindo revelar informações valiosas sobre a evolução humana moderna e a pré-história, como o papel do amido e do consumo de carboidratos na evolução humana e as possíveis implicações das descobertas envolvidas na expansão cerebral do ser humano.

Bactérias e amido no desenvolvimento cerebral do homem-pré-histórico

Depois de aplicar uma estratégia rigorosa para identificar e reconstruir o material genético de até 100 mil anos atrás, os pesquisadores observaram que as bactérias da cavidade oral tanto dos neandertais quanto daqueles do gênero Homo são altamente semelhantes, compartilhando adaptações funcionais no metabolismo de nutrientes.

Particularmente, ancestrais Homo e neandertais abrigavam as bactérias do gênero Streptococcus, que por sua vez têm uma capacidade especial para se ligar à amilase. Essa enzima presente na saliva humana é responsável pela digestão do amido, quebrando essa grande molécula em glicose, que fornece energia ao organismo.

A partir da presença da bactéria Streptococcus, que provavelmente consumia açúcares dos dentes dos neandertais e seus ancestrais, os pesquisadores concluíram que, muito antes da invenção da agricultura, os neandertais consumiam raízes, nozes, grãos e outros alimentos ricos em carboidratos, possivelmente modificados pelo cozimento.

Ou seja, o consumo desses alimentos alterou a composição das bactérias da microbiota oral e forneceu uma ótima fonte de energia para o desenvolvimento do cérebro.

Isso aponta para a necessidade de rever e discutir teorias que atribuem às melhores ferramentas de pedra e à caça cooperativa a explicação para o aumento do tamanho cerebral dos nossos ancestrais.

Dieta paleo sem carboidratos?

Por fim, os pesquisadores apontam a necessidade de que pesquisas futuras sobre o tema sejam desenvolvidas para que forneçam informações sobre as trajetórias evolutivas a partir das microbiotas orais de nossos ancestrais.

No entanto, até aqui já temos uma grande contribuição para desmistificar a ideia de que apenas com o abandono da vida nômade e a instituição do sedentarismo houve um aumento no consumo de alimentos ricos em carboidratos, como os cereais.

Isso também permite refletir sobre a alimentação no mundo contemporâneo, como o "boom" de dietas vistas por aí, em especial a dieta paleolítica, paleo, neandertal ou dieta dos homens das cavernas.

Essas dietas recomendam um grande consumo de proteínas e gorduras e um baixo consumo de alimentos ricos em carboidratos, propondo um suposto retorno à alimentação dos nossos ancestrais.

Mas pelo que vimos com o estudo em questão, os carboidratos tiveram uma grande importância para o homem pré-histórico e foi extremamente importante para a nossa sobrevivência. Ou seja, para ter uma dieta verdadeiramente do período Paleolítico, não dá para cortar os carboidratos.

Esses nutrientes foram importantes para a evolução humana e constituem uma ótima fonte de energia, principalmente diante do ambiente escasso no qual os homens das cavernas viviam.

Coma como os neandertais, mas sem dietas restritivas

A predileção dos seres humanos por alimentos ricos em carboidratos pode ser explicada, em partes, pela importância desse nutriente para a nossa sobrevivência.

Isso também mostra que os carboidratos não são vilões nem viciantes, mas sim nutrientes fundamentais para a evolução da espécie humana.

Claro, hoje em dia já não vivemos nas mesmas condições ambientais da Pré-História, mas temos uma grande oferta de alimentos com excesso de açúcares que estão muito presentes na nossa mesa e que podem contribuir para doenças crônicas como diabetes e obesidade.

Veja bem, o problema é o excesso e por isso mesmo não há porque cortar carboidratos. O caminho é a moderação e não conseguimos isso com restrição alimentar. Lembre-se: seu cérebro odeia dietas.

Se as dietas restritivas podem ajudar você a perder peso a curto prazo, a longo prazo é bem comum o efeito sanfona. Mas não estamos falando apenas de peso, e sim de diversos efeitos negativos para a saúde, tanto a saúde física quanto a mental. Se você já fez dieta, deve se lembrar do quanto é estressante.

Por isso, se quer fazer como o homem pré-histórico, não corte os carboidratos. Em vez disso, consuma alimentos fontes de carboidratos, tendo uma alimentação baseada em comida fresca e caseira, e busque uma relação de paz com a comida e com o corpo!

Bon appétit!

Sophie Deram