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Blog da Sophie Deram

Como a indústria explora a covid-19 para vender mais ultraprocessados

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

02/12/2020 04h00

No dia 17 de novembro 2020, a GHAI (Global Health Advocacy Incubator) divulgou um relatório detalhando como grandes empresas de alimentos (Coca-Cola, McDonald's, Nestlé, PepsiCo), referidas como Big Food, aproveitaram a pandemia da covid-19 para promover alimentos ultraprocessados no mundo todo, especialmente para populações vulneráveis.

Para quem não conhece, a GHAI é uma incubadora que apoia organizações da sociedade civil na defesa de políticas de saúde pública e na redução de mortes e doenças. Participam de diversas ações, como a defesa de alimentos mais saudáveis, redução das gorduras trans e sódio e outras soluções de saúde.

O relatório se chama Facing Two Pandemics: How Big Food Undermined Public Health in the Era of covid-19 (Enfrentando duas pandemias: como as grandes corporações de produtos alimentícios sabotaram a saúde pública na era da covid-19), está disponível no site da instituição e há um resumo executivo em português.

Para a construção desse documento, a GHAI realizou uma pesquisa de março a julho de 2020, durante o início da pandemia, coletando, em 18 países, 280 exemplos de ações da indústria com potencial para interferir no desenvolvimento e na implementação de políticas de alimentação e nutrição. Para isso, foram utilizados diversos métodos, como análise dos discursos, escuta social e monitoramento da mídia.

Big Food e novas formas de marketing

Esse relatório revela como a falta de regulamentação de alimentos no mundo todo permite que as grandes multinacionais usem a crise global da covid-19 para promover ainda mais os alimentos ultraprocessados para as pessoas mais vulneráveis.

De acordo com o documento, além das respostas tradicionais aos desastres nacionais e internacionais, foram identificadas novas formas utilizadas pelas Big Food para promover a venda de seus alimentos e bebidas nesse momento global de vulnerabilidade.

Entre algumas das estratégias que as indústrias de alimentos adotaram, a GHAI citou as seguintes:

  • Transformaram uma crise global em oportunidade de marketing. Na China, um representante da Mondelez afirmou que a empresa inicialmente sofreu uma queda nas vendas devido à pandemia, então eles redirecionaram seus esforços para incentivar as pessoas a cozinhar mais em casa com "o biscoito Oreo". Ele sugeriu que "compartilhar um lanche com seus filhos, já que todos estão confinados em casa, traz de volta um sentimento de normalidade, de união, de calma". No Brasil, o Burger King postou um vídeo em sua conta do Facebook enfatizando a mensagem "fique em casa", ao mesmo tempo que promovia seu serviço de entrega de fast-food;
  • Combinaram estratégias de marketing agressivo com "ações de solidariedade". Isso contribui para fazer uma boa imagem das indústrias de bebidas ricas em açúcares e alimentos ultraprocessados, que como sabemos, podem contribuir com o risco de desenvolvimento de doenças crônicas não transmissíveis e com o excesso de peso. A esse fenômeno de limpar a imagem das corporações, chama-se "nutri-washing" ou "lavagem nutricional";
  • Proclamaram alimentos e bebidas ultraprocessados como produtos essenciais e seguros. No Brasil, o grupo industrial ILSI (International Life Science Institute) destaca que os alimentos industrializados são aliados na luta contra a covid-19, enfatizando seus altos níveis de segurança que reduzem o risco de contaminação química e física. Realmente, devido às grandes quantidades de conservantes e outros aditivos químicos, os alimentos industrializados geralmente são bastante seguros do ponto de vista sanitário, mas não do nutricional;
  • Doaram alimentos ultraprocessados para crianças em programas escolares e populações vulneráveis. Na África do Sul, a Coca-Cola colaborou com uma organização sem fins lucrativos para doar refrigerantes para centros de saúde locais, incluindo um centro de tratamento para a obesidade;
  • Doaram e promoveram fórmulas infantis, violando o Código Internacional de Comercialização de Substitutos do Leite Materno. Isso pode afetar diretamente a nutrição na primeira infância ao desestimular o aleitamento materno, além de transformar a pandemia em oportunidade de gerar novos consumidores;
  • Financiaram plataformas educacionais online destinadas a ajudar crianças a aprender durante a quarentena, misturando o marketing com as informações educacionais e posicionando essas empresas como fontes confiáveis de informações relacionadas à saúde, quando na verdade existe muitos conflitos de interesse;
  • Promoveram alimentos ultraprocessados como um conforto para tempos difíceis, associando-os a sentimentos atraentes como nostalgia e boas relações familiares;
  • As empresas postaram conteúdo interativo nas mídias sociais com mensagens como "escolha sua casa de quarentena" ou "envie abraços virtuais". Também surgiram produtos com novas embalagens, enviando mensagens de apoio aos consumidores.

Alimentação como direito humano

O titulo do relatório: "Enfrentando duas pandemias: como as grandes corporações de produtos alimentícios sabotaram a saúde pública na era da covid-19" mostra que essas estratégias de marketing das Big Food têm explorado a vulnerabilidade dos consumidores durante a quarentena, além disso colocam o Direito Humano à Alimentação Adequada em risco.

Quando se trata de alimentação não é uma questão apenas de ter comida na mesa, mas de ter alimentos de qualidade, variados, seguros do ponto de vista sanitário e adequados do ponto de vista cultural, entre outras coisas.

Por isso, o relatório ressalta a necessidade urgente de políticas e regulamentações para a indústria de alimentos com base em evidências, bem como protocolos de conflito de interesses em todo o mundo.

Os planos de ação podem incluir impostos sobre bebidas ricas em açúcares e sobre alimentos ultraprocessados, rotulagem eficaz, regulamentações de marketing e limites à publicidade de alimentos industrializados.

Perceba que não se trata de querer o fim da indústria de alimentos, da qual somos tão dependentes atualmente. A ideia é que a saúde pública seja priorizada antes dos interesses e lucros privados para que tenhamos alimentos de melhor qualidade e a garantia de uma alimentação adequada e saudável.

Os países também devem permitir e educar os cidadãos a buscarem a garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada e à Saúde junto ao governo e outros atores por meio de medidas legislativas, legais ou administrativas, caso esses direitos sejam violados.

Assim, torna-se possível a criação de ambientes e sistemas alimentares mais saudáveis, contribuindo para que as pessoas façam escolhas alimentares melhores e que exista uma proteção do Direito Humano à Alimentação Adequada e, consequentemente, da saúde.

Bon appétit!

Sophie Deram