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Nuno Cobra Jr

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O maior segredo do treinamento físico permanece inacessível aos alunos

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

02/12/2021 04h00

Desenvolvi uma imagem didática para ilustrar um dos conceitos mais essenciais do treinamento físico. Caso você pudesse convidar o campeão do Iroman, a prova mais radical do triatlo mundial, para trabalhar em uma plantação de cana, ele provavelmente iria parar no hospital após uma semana.

O seu corpo iria se ressentir de uma adaptação mais longa a um tipo de esforço repetitivo específico, agachando e levantando, ou trabalhando de cócoras, em posições incômodas à sua coluna, além do volume intenso de atividade, sem pausa, trabalhando pesado durante 12 horas seguidas, somado à falta de adaptação a uma exposição ao sol quente durante um longo período.

Moral da história: o nosso corpo pode se adaptar a tipos variados, complexos e intensos de atividade física, mas, para isso, ele precisa passar por um processo adaptativo cuidadoso e demorado.

E aqui surge o primeiro entrave, prometer resultados lentos e gradativos não faz parte do vocabulário do marketing do treinamento.

A frase anterior explica, em uma só sentença, um grande problema do treinamento atual. O mercado está dando aquilo que ele entende ser uma demanda do consumidor: atingir resultados estéticos com rapidez.

Dessa forma, ele tem investido, durante as últimas décadas, em métodos radicais e extremos que prometem acelerar os resultados. No entanto, qual o efeito colateral de um treinamento com o foco na estética e que promete acelerar o ritmo ideal de treinamento?

Ele irá dificultar imensamente a adesão do aluno e expô-lo a um nível de esforço ao qual ele não está adaptado
Resultado: como a maioria dos alunos está acima do peso ou são sedentários, o risco de desistência ou de sofrer uma lesão aumentam exponencialmente.

Pesquisas mostram que, na "era fitness", o maior entrave é a permanência: 64% das pessoas abandonam o programa de exercícios no terceiro mês e apenas 3,7% persistem por mais de 12 meses.

Definitivamente, exagero e exaustão não combinam com saúde!

Desde 1984, eu cuido do treinamento físico e mental de alguns dos maiores atletas, empresários e executivos brasileiros. A partir de 2004, realizei uma pesquisa que durou 12 anos, desconstruindo os principais mitos da atividade física e destrinchando a cultura do treinamento atual. Esse projeto resultou em um livro, no qual desenvolvi os princípios fundamentais de um treinamento físico saudável e eficiente.

Dessa forma, o maior segredo do treinamento físico, algo ainda inacessível a imensa maioria dos alunos, é adotar uma abordagem cuidadosa e consciente que se divide em diversos princípios, tais como:

1) Treinamento Humanizado - Sem sofrimento, na medida exata, sem exagero. A moderação como o princípio mais fundamental do treinamento físico;

2) Treinamento Sustentável - É equilibrado, extremamente gradativo, lúdico e prazeroso. Colaborar na sustentabilidade de um treinamento, significa respeitar todos os princípios fundamentais presentes nessa lista;

3) Treinamento Inclusivo - Adapta-se a todos os tipos físicos. Não é você que tem que se adaptar aos modelos radicais de treinamento, é o treinamento que tem que se adaptar à realidade de cada aluno;

4) Treinamento Orgânico - Respeita o ritmo de evolução e o "momentum corporal" de cada aluno. Você não joga uma semente ao chão e dela nasce uma árvore adulta em poucos meses;

5) Treinamento Integral - Une corpo, mente, emoção e espírito e integra todas a áreas do conhecimento corporal, como a cardiologia, a fisioterapia, a fisiologia, a osteopatia e as técnicas somáticas;

6) Moving Meditation - Um retorno ao treinamento natural, low-tech, sem equipamentos complexos e artificiais, formas de treinamento que estimulem a consciência, a inteligência do movimento e sejam funcionais, resultando em uma estrutura corporal harmônica, flexível e equilibrada.

Esses princípios orientam a nova geração de profissionais do treinamento físico consciente realizado sob medida, visando a saúde e não apenas a estética corporal.

Como você pode notar, a minha pesquisa me coloca à margem da cultura do treinamento atual, repetindo, à exaustão, conceitos que não chegam ao público em geral devido ao amplo domínio mercadológico do universo fitness.

A dica que foi passada no vídeo serve para você?

A partir dessa visão integrativa e holística do treinamento, fico bastante chocado ao assistir aos tutoriais que estão disponíveis ao público na mídia e na internet, muitos deles feitos por profissionais renomados e famosos. Afinal, para quem são feitos esses vídeos? Para uma elite do treinamento físico?

Assistir a um tutorial de HIIT para mim é uma tortura. Eu logo imagino um aluno que está 30 kg acima do peso, sedentário há algumas décadas, sendo submetido a uma sequência brutal de burpees, flexões e saltos, em alta intensidade, e a minha coluna se arrepia.

Ao entrar em uma academia, ou passear pelo parque do Ibirapuera, logo sou tomado de uma nauseante sensação de torpor e espanto, o aluno que está acima do peso e que começou a treinar a semana passada, está passando por um sofrimento indescritível, sendo obrigado a seguir rotinas exaustivas que claramente não se adequam à sua realidade.

Qual o principal problema de um modelo de treinamento dominante e massificado, em "linha de montagem"?
Ele exclui todos os tipos físicos e psicológicos que não se adaptam a esse modelo. Analisando apenas o perfil físico, de cara, algumas modas do treinamento excluem mais de 90% da população, somando os sedentários, obesos, idosos, alunos com sobrepeso, alunos sem regularidade e alunos sem adaptação a esse modelo radical.

A falha muscular concêntrica é um conceito que falha

Para quem não sabe, a teoria da falha concêntrica afirma que o ideal é treinar até o limite da exaustão, ao ponto de não conseguir fazer mais uma repetição sequer do exercício proposto. Esse conceito surreal é a última moda do treinamento estético com o foco no crescimento muscular.

Essa teoria pode fazer sentido para um bodybuilding (marombeiro), não para um aluno que busca hipertrofia, mas também se preocupa com a sua saúde de forma mais abrangente.

Acontece que treinar até à exaustão é a pior estratégia de treinamento possível quando o foco é a longevidade e a saúde.

Uma hipertrofia muscular saudável, eficiente e positiva ocorre bem antes da falha concêntrica. Pergunte a um fisioterapeuta ou a um especialista em medicina integrativa o que pode acontecer ao seu corpo quando você treina até à exaustão, estando bem adaptado ou não.

Cinco fatores se sobressaem em meio a diversos efeitos negativos do modelo de treinamento exaustivo:

1) Uma destruição progressiva e metódica das articulações e cartilagens;

2) Envelhecimento precoce e uma acidificação do sangue devido ao aumento dos radicais livres;

3) Risco acentuado de sintomas associados ao overtraining, causando desequilíbrios tais como distúrbios do sono, estresse crônico e depressão;

4) Baixas súbitas no sistema imunológico;

5) Perda de flexibilidade, encurtamento dos tendões e tensão muscular crônica, levando a graves alterações no humor e bem-estar físico e mental.

Resumindo: Não deveríamos obedecer a regras externas, a tutoriais ou dicas que você viu em alguma matéria ou vídeo na internet, mas às regras internas, àquilo que o seu corpo lhe diz que é adequado ao seu "momentum corporal" (à intensidade, duração e volume que seria ideal no seu caso específico)

Por exemplo, para alunos que estão acima do peso e inativos há muito tempo, 10 segundos de isometria na prancha abdominal já pode ser algo extremamente intenso.

Esse é o grande problema do treinamento físico, enfileiramos conceitos, dicas e teorias, afirmando qual o melhor caminho ou estratégia, escrevemos milhares de matérias sobre o assunto, mas, no fundo, ignoramos totalmente que esses conceitos talvez não se aplicam à imensa maioria das pessoas que verão o texto ou o vídeo, já que a maioria delas estão acima do peso e são sedentárias.

Sai uma nova pesquisa e as pessoas já adotam a dica que foi passada, sem saber se a pesquisa foi feita com pessoas que tinham um perfil similar ao seu.

Ou seja, para não errar a intensidade do seu treino, só tem um jeito: parar de seguir o que te mandam seguir e começar a desenvolver a sua própria escuta e consciência corporal.