Topo

Nuno Cobra Jr

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Ser atleta é uma profissão insalubre

iStock
Imagem: iStock

Colunista do VivaBem

12/08/2021 04h00

Ser atleta pode se tornar uma atividade de extremo desgaste físico, mental e emocional.

A minha amiga Mariana Salles de Oliveira, psicóloga, definiu bem esse desafio: um atleta é alguém que tem que subir o monte Everest todos os dias, um desafio que nunca chega ao fim. Quando acaba uma competição, logo é necessário se preparar para a próxima batalha.

Na mitologia grega, Sísifo foi condenado pelos deuses a um dos piores castigos: rolar diariamente uma pedra extremamente pesada até o ponto mais alto da montanha, apenas para vê-la cair ao chão e iniciar tudo novamente no dia seguinte, por toda a eternidade. Se você se identificou com esse sentimento de sacrifício diário extremo, saiba que isso faz sentido.

De certa forma, a competição extrema se espalhou por todos os setores da nossa sociedade, cultuando valores como o autossacrifício, a dedicação extrema e a resistência à dor como elementos essenciais para o sucesso.

Nessa seleção natural cruel, os seres humanos, "atletas" que representam os poderes supra-humanos, simbolizando os deuses do Olimpo, se esforçam ao máximo para atingir a perfeição.

Nessa tarefa ingrata, nada mais radical do que o papel assumido pela mulher no mundo atual, uma "atleta do decatlo", dividida entre o desafio de ser uma profissional perfeita, cuidar dos filhos, cuidar da casa, ter um corpo perfeito, ser uma esposa perfeita, entre outros desafios diários.

Porém, nem tudo é dor e sacrifício na profissão divina de ser um atleta. A atividade corporal proporciona aos praticantes do esporte um êxtase atlético profundamente gratificante e recompensador, liberando hormônios altamente estimulantes em sua corrente sanguínea. O que se traduz em uma explosão transcendente de extremo prazer físico e mental.

Quem diria, a atividade corporal é a forma mais palpável e concreta de se sentir um ser divino, tocar de leve o céu, seja por meio do ato sexual, seja pelo orgasmo atlético proporcionado pelo esporte.

Vale tudo para chegar à vitória?

Na Grécia antiga, os atletas pertenciam à classe mais abastada, recebendo um tratamento de luxo, assim como um cavalo puro sangue campeão de corrida. Cada uma das cidades do mundo grego investia pesado em treinar e alimentar seus atletas, buscando o prestígio supremo de se igualar aos deuses.

Minha filha Rosa, de 5 anos, ficou bastante impressionada com os desafios que um ser humano é capaz de superar, como pular 2,45 metros, a altura de uma casa, saltar a distância de 8,95 metros, o tamanho de um caminhão, saltar com uma vara 6,18 metros, a altura de um pequeno prédio, ou correr em alta velocidade durante mais de duas horas na maratona olímpica, mesmo sob um calor infernal.

Não por acaso, os seres supra-humanos, os super-heróis, ainda seduzem a nossa imaginação, basta ver que os filmes de maior bilheteria exploram esse fetiche.

Ela também ficou muito triste com o desabafo de um competidor brasileiro no atletismo após não conseguir atingir a sua meta. Realmente, até eu fiquei assustado com a carga de sacrifício que nossos atletas se propõem a fazer. O atleta dizia, chorando, em absoluto desespero, que foi obrigado a abrir mão de tudo, da sua vida, da sua família, em prol do ideal olímpico e que, no entanto, tinha fracassado em seu objetivo.

Nas Olimpíadas só se tem uma certeza, ganhando ou perdendo alguém vai chorar.

"Papai, competir não é muito legal, né! Uma pessoa fica feliz e todas as outras ficam tristes

Essa foi a conclusão de Rosa, no alto da sua sabedoria infantil, um raio premonitório, antecipando um tempo em que a colaboração e o respeito ao ser humano se estabelecerão como princípios extremamente valiosos.

Chegamos a um esgotamento, ninguém aguenta mais o regime cruel da competição extrema, o ser humano e o próprio planeta estão exaustos, doentes e totalmente exauridos. Se eu corro mais rápido, isso força o meu concorrente a correr também, e vice-versa. Resultado: essa correria não pode levar a um bom fim. Ou seja, a humanização nos esportes ou nas empresas é uma pauta urgente.

Sou apaixonado por esportes

Quase fui um tenista profissional, passei a infância e juventude competindo em esportes diversos, como vôlei, basquete, natação e skate, entre outros. Ou seja, conheço cada detalhe desse universo, seja como esportista, seja como treinador, cuidando do treinamento físico e mental de alguns dos maiores atletas brasileiros há 37 anos. Dessa forma, sinto um impulso genuíno em defender a humanização nos esportes e a reeducação física e mental dos atletas de competição.

Já atingimos os limites da fisiologia humana. Os atletas deveriam se contentar em serem os melhores da sua geração, de uma forma limpa, digna e saudável, sem trapaças, uso de substâncias ilícitas ou recursos extremos.

Se para os atletas de uma grande potência treinar é matar um leão por dia, para os nossos atletas treinar é fugir de três leões e ao final do dia, totalmente exausto, matar um crocodilo e um rinoceronte à unha. O estresse de um atleta de alto rendimento atualmente, em diversos setores, se aproxima ao de um executivo de uma empresa. No caso do atleta, a empresa é ele mesmo, ou seja, ele é o único responsável pela sua sobrevivência e saúde empresarial, sofrendo uma pressão mental e emocional absurda, a cada competição.

Mais do que nunca, essa olimpíada nos fez acordar para o preço que se paga pelo sucesso esportivo.

Se engana quem pensa que tudo é um mar de rosas para os países desenvolvidos. Analisando o quadro de medalhas, podemos notar que os países que estão à frente são também os países que expõem seus atletas a um regime de treinamento cruel e rigoroso. Os "cavalos de corrida" têm que render, então vamos treiná-los, cada vez mais cedo, para serem exigentes, obsessivos, perfeitos e um pouco superiores à concorrência.

E isso não acontece só no esporte, como também em outros setores. Veja o caso do cantor Michael Jackson ou da atriz e cantora Judy Garland, na geração anterior, provando que a história do abuso infantil mercadológico, quando a criança se torna um produto altamente rentável, sempre se repete. Ambos foram explorados durante a infância, sendo submetidos a regimes desumanos de adestramento, o que resultou em danos psicológicos severos na idade adulta.

Quando o caso da Simone Biles veio a público, enquanto alguns políticos conservadores norte-americanos a chamaram de "vergonha da nação", por desistir da competição, mesmo sendo considerada a maior ginasta olímpica de todos os tempos, ex-atletas da ginástica olímpica feminina se diziam representadas e aliviadas por essa atitude, denunciando o regime de treinamento desumano a que são submetidas durante a infância.

O que podemos fazer como sociedade para evitar que pais ou treinadores —ou ambos, como é mais comum— exponham uma criança a regimes severos e abusivos de treinamento?

Nos países de regimes autoritários, uma atleta aprende que o sofrimento extremo é o único caminho para o sucesso, sendo obrigada a treinar de uma forma desumana, o que compromete severamente a sua saúde física e mental no futuro. Nos países liberais, a mentalidade do mercado a condiciona a acreditar nesse mesmo princípio, mesmo que ela não tenha um chicote apontado para as suas costas. Como ela já internalizou essa verdade, ela mesmo se impõe o auto sacrifício extremo e a dor como método de treinamento.

Uma ex-atleta da ginástica olímpica norte-americana disse recentemente que teve que treinar durante vários meses com uma fratura na tíbia, o que a fez desmaiar de dor antes de uma competição. Como a haviam ensinado, desistir não era uma opção.

As pessoas não sabem como é a vida de quem não tem outra vida senão treinar e repetir à exaustão um movimento que se aproxime da perfeição Katia Rubio, psicóloga do esporte

No entanto, aqueles que estão assistindo à TV, no conforto dos seus lares, sentados no sofá, se sentem no direito de julgar e repreender qualquer erro e deslize desses atletas.

Nessas Olimpíadas do Japão, os atletas desceram do Olimpo e se mostraram humanos, demasiado humanos, para espanto dos telespectadores.

Como costumo dizer, os atletas não são máquinas de entregar performance. Ser colocado nesse olimpo da perfeição tem levado esses atletas à depressão e à insanidade física e mental.

Como disse Simone Biles: "Todos os dias parece que eu estou levando o mundo nas costas". Ela foi treinada, desde os 6 anos, para ser uma máquina de entregar performance, sofrendo todo tipo de abuso.

Um belo dia, ela se viu em profundo desespero e se despiu desse peso. Era isso ou a sua saúde física e mental. Quem vai julgá-la?