Gustavo Cabral

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Opinião

A luta para a erradicação do trabalho infantil é complexa e necessária

Nos dias 19 e 20 de outubro de 2023 aconteceu o 2º Seminário de Combate ao Trabalho Infantil no Santuário Nacional de Aparecida, em Aparecida (SP), que é organizado pela Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (Ejud-15).

Nesse evento, em que tive o prazer de palestrar, houve a presença de magistrados, procuradores, auditores fiscais do trabalho, representantes do clero, pesquisadores, etc. para debater as causas, consequências e responsabilidades das autoridades públicas e da sociedade civil com essa chaga que assola o presente e o futuro de parte da sociedade menos favorecida.

Com isso, tive a oportunidade de conversar com o desembargador do trabalho João Batista Martins César, gestor nacional, representante da Região Sudeste, do Programa de Combate ao Trabalho Infantil e de Estímulo à Aprendizagem da Justiça do Trabalho e presidente do Comitê Regional de Combate ao Trabalho Infantil do TRT-15, sobre esse tema.

Nesse diálogo, João César compartilhou informações que precisamos refletir sobre elas, para que as ações sejam tomadas da melhor forma. Por exemplo, ele citou que, segundo o IBGE (2021), em 2019, o Brasil tinha cerca de 1,8 milhão de crianças e adolescentes, com idades entre 5 e 17 anos, em situação de trabalho infantil. Desses, 706 mil (45,9%) estavam em ocupações classificadas entre as suas piores formas, como o tráfico de drogas e a exploração sexual.

Embora sejam dados alarmantes, é preciso considerar que eles estão subdimensionados, uma vez que o Banco Mundial concluiu que o trabalho infantil, no Brasil, pode ser sete vezes maior do que apontam as pesquisas.

O percentual seria, na verdade, de 19,15%, ou 5,658 milhões de crianças de 7 a 14 anos em situação de trabalho infantil (leia aqui).

Infelizmente, ressalta João César, essas crianças não têm o direito de nascer crianças. Elas nascem adultas. E permanecem invisíveis aos olhos de grande parte dos cidadãos, políticos e gestores públicos.

Nosso olhar teima em naturalizar crianças pobres e pretas no trabalho infantil, como se esse fosse seu destino próprio, afinal, "melhor trabalhar do que roubar". Não se enxerga (ou não se deseja enxergar) as infinitas violações que habitam a vida da criança que trabalha e abandona a escola, a infância e a possibilidade de uma vida com direito a ter direitos.

Com tudo isso, como podemos mudar essa situação?

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João César me escreveu que o Brasil precisa, com urgência, olhar atenciosamente e comprometidamente para as nossas crianças e adolescentes que vivem em situação de pobreza, desenvolvendo políticas públicas que instituam programas de transferência de renda destinadas especificamente a elas, desde a primeira infância até a conclusão do ensino médio, patamar mínimo para o ingresso no mundo do trabalho globalizado, da indústria 4.0 e da tecnologia 5G.

Inclusive, durante o 2º Seminário de Combate ao Trabalho Infantil no Santuário Nacional de Aparecida, durante a palestra de José Roberto Dantas Oliva, juiz aposentado do TRT da 15ª Região, ele, juntamente com João César, tem defendido a necessidade de uma bolsa-educação para os adolescentes concluírem o ensino médio, já que o Brasil é o campeão da geração nem-nem: nem estuda nem trabalha.

Isso chamou minha atenção e inclusive falei que, se houvesse esse apoio, eu não teria desistido de estudar, ao ponto de repetir três vezes a antiga oitava série. Pois eu saí de casa aos 15 anos para trabalhar, morava só e acordava por volta das três horas da manhã para trabalhar em feira pública, para poder ajudar minha família e me sustentar.

Com um suporte desses, eu e milhões de outros jovens não precisariam passar por situações que passamos para buscar um mínimo de condições de vida. Valendo a pena ressaltar que, devido à educação, saí daquele tipo de vida que acabei de citar para seguir uma carreira acadêmica de sucesso, como me tornar imunologista PhD pela USP, fazer três pós-doutorados pelas universidades de Oxford, Inglaterra e Berna, Suíça.

Com isso, quero dizer que não podemos fechar os olhos para a tragédia que é o trabalho infantil nem para a necessidade desse tipo de ação para garantir o estudo e alimentação das crianças e adolescentes, assim como suas famílias.

Claro que não podemos achar que não há luta para acabar com a chaga do trabalho e exploração infantil. Entre algumas ações de sucesso, João César cita que o Brasil tornou-se referência mundial de combate ao trabalho infantil com a adoção dos programas bolsa-escola, em 1992, e Bolsa Família, em 2003.

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Entre 1992 e 2015, 5,7 milhões crianças e adolescentes de 5 a 17 anos deixaram de trabalhar no Brasil, o que significou uma redução de 68% (leia aqui). Mas, vale a pena destacar que, infelizmente, verifica-se, a partir de então, relevante mudança nas políticas públicas a respeito do tema e, consequentemente, um grave retrocesso, com o aumento da incidência do trabalho infantil.

Para além das ações públicas, João cita o mito do trabalho infantil como meio de formação moral e encaminhamento das crianças pobres para a vida laboral.

O magistrado diz que uma das maiores dificuldades para o efetivo enfrentamento do trabalho infantil é a cultura existente no Brasil de aceitar, com muita naturalidade, o trabalho infantil do filho do pobre. Muitos mitos são divulgados e perpetuados, como "é melhor trabalhar do que roubar" ou que "o trabalho infantil não mata ninguém".

Trata-se de narrativa que não corresponde à realidade e persiste em razão da ignorância das pessoas que acabam replicando essas "frases" sem a noção efetiva da realidade.

Como todos estamos suscetíveis às mentiras e falácias das redes sociais, João César citou exemplo práticos, como um caso que recentemente viralizou nas redes sociais, o vídeo do menino engraxate que procurava comprar um relógio para o seu pai (padrasto).

O fato foi romantizado como um belo exemplo de esforço pessoal por meio do trabalho precoce, considerado dignificante, embora envolvesse uma criança de dez anos, em plena pandemia de covid-19, exercendo uma das piores formas de trabalho infantil, vedada para quem ainda não completou 18 anos, constante da denominada Lista TIP, anexa ao Decreto 6.481, de 2008, que regulamenta os artigos 3º, alínea "d", e 4º da Convenção 182 da OIT (Organização Internacional do Trabalho).

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A ampla divulgação do vídeo fazendo apologia ao trabalho infantil foi seguida de grande campanha de ódio contra o procurador do trabalho que atuou no caso. Cite-se, a respeito, artigo de indispensável leitura de José Roberto Dantas Oliva: "O menino engraxate, o relojoeiro, o Procurador do Trabalho e o presidente da República: personagens de uma tragédia da vida real".

Por fim, é preciso ficar claro que o trabalho precoce não leva ao sucesso, mas à perpetuação de um ciclo de miséria e pobreza.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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