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Alexandre da Silva

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A morada de meu pai: pessoas idosas e as festas de final e começo de ano

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

27/12/2021 04h00

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A morada do meu pai é a mesma casa onde nasci. É a residência das minhas alegrias! Lembro da minha infância, dos meus amigos e das minhas conquistas. Hoje, juntamente com minhas filhas e sobrinhos, somos três gerações que celebramos mais um final de ano e vibramos para um próximo ano próspero, repleto de muitos encontros presenciais e no aguardo da chegada da primeira bisneta!

A morada do meu pai tem telhado dessa vez. Sim, nos anos anteriores a gente torcia para que não chovesse em dezembro nem janeiro. Dentro dela não cabia tanta gente. A casa ficava muito insegura e muito molhada. Meu velho já tinha caído três vezes dentro dela. Mas esse ano teremos um telhado. Pode mandar chuva, São Pedro!

A morada do meu pai, na verdade, é a moradia de minha mãe, uma mulher idosa que sempre trabalhou e lutou para que todos pudéssemos crescer com o mínimo de dignidade. Hoje já não tem o mesmo vigor de antes, mas faz questão de reunir toda a família na sua casa. Sempre custeava toda a festa de final de ano. Dessa vez, pediu para que levássemos um prato de uma comida doce ou salgada. Suas finanças acabaram com tanto tempo de pandemia e falta de assistência não só para ela, mas para suas irmãs e amigas de mesma geração.

A morada do meu pai tem sido a rua já têm três anos. No ano passado conseguimos localizá-lo. Levamos comida, bebida e o casal de netos que chegaram durante a pandemia. Meu pai, agora avô, é muito emotivo. Chorou copiosamente enquanto segurava os netos em seus braços cheios de amor e da sujeira de quem está em situação de rua e não consegue um bom chuveiro todos os dias. Ele ainda tem rancor das nossas brigas pela sua herança. É por isso que nos abandonou. Considera que foi muito desrespeito da nossa parte brigar pela divisão dos seus bens com ele ainda vivo. Agora, naquela calçada, choramos juntos e lamentamos todo o ocorrido.

A morada de meu pai é uma herança do meu avô. Adoramos o mar, velejar, sair para conhecer o mundo. Dessa vez, compramos uma embarcação ainda maior e levaremos alguns amigos de infância e seus filhos adolescentes. Resolvemos presentear a dona Teresa, que trabalha conosco há mais de 40 anos. Dessa vez, ela não precisará preparar os pratos que gostamos dias antes da viagem porque ela estará com a gente. Isso não é incrível? E para ajudar na renda da família dela, pedimos para que o sr. Geraldo, esposo dela, ficasse na nossa casa, tanto para protegê-la de "intrusos", mas para que ele possa usufruir de tudo que deixamos na geladeira e nos armários. Ah, é certeza de que a família deles está feliz com nossas atitudes!

A morada da mãe poderia ainda ser a nossa, o local que por muitos anos celebrávamos todos os eventos festivos, mas não tivemos maturidade para entender a escolha que fez depois de velha. Assumiu o relacionamento com quem achávamos que era apenas uma amizade entre duas vizinhas. Agora estão sempre juntas, nos passeios, nas caminhadas matinais, na conta da rede social que criaram para abordar esse tema ainda tabu para boa parte da sociedade. De lá para cá, toda festa é na casa da família que a aceitou. Aqui, onde sempre sobrou discriminação, agora falta a presença dela e da sua risada tão alta e tão gostosa de se ouvir.

A morada dos meus pais falta tanta gente: dois netos, uma filha, dois genros, um bisneto e uma sobrinha criada como filha. Morreram todos no mesmo ano, vítimas da pandemia. Ninguém tem disposição para comemorar alguma coisa. Onde antes se falava de tudo, da política aos preparativos do encontro do próximo ano, agora sobram pessoas arrependidas em quem votaram, pela disseminação de fake news nos grupos de família e incentivo a não tomar vacina. O final de ano foi atravessado pela idolatria a um homem idoso que governa o país do futebol e que não é tão democrático.

A morada dos meus pais sempre nos abrigou do jeito que deu. Tinha ano que tinha mais de um tipo de carne na mesa, mais de um tipo de fruta e até sorvete de sobremesa. Podíamos chamar quem quiséssemos que meus pais ficavam felizes da vida. Dessa vez, meus pais que continuam com os mesmos corações abertos cancelaram as festas de final e começo de ano. Disseram que, além dos dias 25 de dezembro e 1 de janeiro, têm os dias 24, 26 e 31 de dezembro, além do dia 2 de janeiro, mandando o recado de que não temos dinheiro para festejar. "Não queremos que ninguém dessa família sinta fome no próximo ano!", disseram. E ponto.

Nesse final de ano muitas pessoas idosas queriam suas casas cheias de pessoas queridas, mesas fartas, uma conta bancária com alguma reserva, mais relacionamentos resolvidos e mais afetivos. Não foi dessa vez. Ainda estamos colhendo as consequências das escolhas que fizemos, das opiniões que acreditamos nos últimos anos e da desunião enquanto sociedade.

Votamos em muitas pessoas idosas que não souberam ou não quiseram garantir as mínimas condições de vida às pessoas de sua geração. Dessas pessoas e de seus colegas de trabalho jovens ou adultos ganhamos um presente: um aumento de 8% em relação ao ano passado dos alimentos da ceia de Natal! Seja você quem celebra ou não essa data, o resultado de tanta falta de empatia e assistência cairá em você também.

Continuamos com o projeto de depreciar, desproteger e não garantir aos velhos e velhas desse país uma condição digna para envelhecer, quem dirá para festejar.

Os últimos dois anos parecem um só, tamanha a continuidade de problemas decorrentes do cenário político, econômico, pandêmico, social e educacional. Infelizmente, não será no dia 1 de janeiro que tudo mudará, mas poderá ocorrer ao longo de 2022.

Desejo a quem lê esse texto boas festas, para quem é de festejar; boas reflexões, para quem aproveita esse período para ficar mais em silêncio; bom trabalho, para quem ficou sem atividade ocupacional remunerada o ano todo; bons passeios, para quem aproveita os dias para sair um pouco de casa; e muitos sonhos, para quem não teve um sequer esse ano.

Eu desejo que possamos nos encontrar mais vezes em 2022!