Dor que virou missão

Daiana Garbin diz como lida com angústia, culpa e fé após diagnóstico de câncer da filha

Daiana Garbin em depoimento a Luciana Bugni

No fim de setembro de 2021, estava dando comida para a Lua, que então tinha 11 meses, perto de uma janela. Entrou uma luz forte pelo vidro, diretamente no rosto dela e eu vi uma mancha branca dentro de seu olho.

Não era a primeira vez que eu ouvia falar nisso. Há dois meses, Tiago [Leifert, marido de Daiana] vinha falando que havia algo estranho nos olhos de nossa filha. Mas eu negava. Chegamos a levar à pediatra, que afirmou que estava tudo bem.

Naquele dia, no entanto, com aquele raio de Sol, me dei conta de que meu marido estava certo e fiquei desesperada.

Levei novamente à pediatra e fomos encaminhados para um oftalmologista que diagnosticou câncer e mandou para outro especialista. Eu seguia em negação, contestando os médicos e dizendo que eles estavam errados.

O especialista afirmou que havia um tumor em cada olho e que eles estavam avançados, mas não sabíamos quanto. Precisávamos fazer um exame com anestesia geral para descartar a hipótese de metástase no cérebro. De volta ao carro, eu só chorava e dizia que os médicos não sabiam nada.

Só me dei conta do que estava acontecendo de fato quando li, na porta do quarto consultório que visitamos, pediatria oncológica. Só não desmaiei nesse momento porque a Lua estava em meu colo. Mesmo assim, tenho certeza de que Deus me protegeu de entender tudo para que eu tivesse força de tocar o tratamento.

Tratamento no SUS

Ninguém sabe até hoje, mas descobrimos os tumores no grau E. O passo seguinte seria a metástase. Nunca contamos para ninguém para preservá-la - foram muitas sessões de quimioterapia com anestesia geral, em que um catéter era introduzido por sua virilha e jogava a quimioterapia intra-arterial diretamente no globo ocular.

É um tratamento de ponta no mundo todo, que está disponível no Brasil pelo SUS. O médico que atende minha filha é o mesmo do sistema público de saúde.

Tiago só me contou os riscos do tratamento, informado pelos médicos, há poucos meses. Achei melhor não saber, porque não ia aguentar. Não fui ao Google e confiei no que me disseram.

Choramos juntos algumas vezes, escondido da Lua, mas Tiago se manteve forte na maior parte do tempo, o que me ajudou muito. Há muitas fases difíceis, muito desespero e a dificuldade de escutar quando um remédio não funcionou ou uma cirurgia não deu certo, por exemplo, o que acontece com frequência.

Como era um câncer muito avançado - nem sabemos quando ela desenvolveu, só que não nasceu com ele - o tratamento precisava ser muito efetivo.

Missão de vida

Nos primeiros meses, nesse turbilhão devastador, não tínhamos condição de falar sobre nada do que estávamos vivendo por quatro meses. Até que Tiago começou a me mostrar a importância de falar sobre o assunto para alertar outras famílias sobre o diagnóstico precoce.

Nos demos conta de nesse período em que calamos que muitas crianças tinham tumores crescendo no olho e os pais não sabiam.

Se nós, dois jornalistas, que vivem em São Paulo e têm acesso aos melhores médicos e muita informação, só descobrimos no estágio avançado, imagina quem não tem acesso à informação no Brasil?

Por isso, resolvemos contar em janeiro, quatro meses depois, enquanto ela ainda passava pelas primeiras quimios, que se estenderam ainda por dois anos.

Há coisas que acontecem em sua vida que não são esperadas, mas transformam a vida para sempre. Tinha dois caminhos: afundar no sofrimento ou arrumar um jeito de enxergar a vida de outra forma, o que acabamos fazendo depois, ao criar a ONG De Olho nos Olhinhos.

É uma doença muito rara e, quanto mais cedo o diagnóstico, maior a chance de efetividade no tratamento. Tenho certeza de que Lua vai gostar de saber quantas vidas ela ajudou a preservar.

Quando acontece uma tragédia assim em nossas vidas, começamos a contestar Deus. Fiz algo errado? Por que minha filha está sendo castigada? Esse pensamento leva a mais dor e tive que mudar: Deus mandou, por meio de nossa filha, uma missão para salvar outras crianças.

No nosso coração, todas as crianças que têm retinoblastoma no país são um pouco nossas filhas também, e a gente vai cuidar delas e tentar salvá-las. Fazemos campanhas, ajudamos famílias e atendemos todos que nos procuram pela ONG.

Faremos tudo que estiver ao nosso alcance para ajudar porque não é justo que minha filha tenha acesso ao tratamento e outras crianças não.

Essa é uma doença tão rara que não há fila no SUS. O gargalo é o diagnóstico precoce e o ideal é que toda criança vá ao oftalmologista com seis meses de vida.

Costumamos levar só em idade escolar, quando é detectado algum problema de aprendizado. Daí a importância de observar os sinais como reflexo branco nos olhos, estrabismo, desvio de olhar (como se o olho fosse uma câmera procurando foco). Informação salva vidas e não é exagero dizer isso.

E seguimos cuidando da ONG De Olho nos Olhinhos, ajudando famílias, levando informação e próteses oculares.

'A cada 60 dias, vivo de novo'

Quando a gente recebe a notícia de câncer de um bebê de 11 meses, não tem opção que não seja lutar, acreditar em Deus e confiar nos médicos. A criança não sabe o que está acontecendo, não tem sintoma e só queria engatinhar. A medicina não explica ainda porque isso aconteceu, e quando é difícil a compreensão, é natural negar Deus.

Eu dizia: não pode ser verdade que estou levando a minha filha para a quimioterapia.

Diante de tudo que vivi, a pior dor que uma mulher pode sentir é o medo de perder um filho. Você quer acreditar que é mentira e que vai acordar de um pesadelo.

Quando uma criança adoece de câncer, a família toda adoece. Minha mãe veio do Sul e a família do Tiago deu todo o apoio aqui. Se souber se uma criança com tumor, pergunte como estão o pai e a mãe, que eles precisam muito de apoio.

Por todo esse tempo, Lua não frequentou a escola, até agosto do ano passado. É um milagre que ela enxergue. Nesse momento, estamos em observação, as quimios acabaram e o tumor está calcificado.

Porém, fazemos exames a cada 60 dias porque existe grande risco de voltar até os 5 anos de idade. Cada exame desse é uma nova anestesia geral.

Fazer quimio e esperar três semanas para saber se o remédio fez efeito — e pode não fazer efeito! O câncer é um grande professor e ensina a aceitar que não temos controle de nada. A cada 60 dias, vivo de novo. A doença da minha filha me trouxe urgência de ser feliz.

'Estou me reconstruindo'

Essa angústia e esse medo me transformaram para sempre. Logo eu, imediatista, ansiosa, perfeccionista, desesperada por controle, tive que aprender a ser calma, ter paciência e esperar. O tratamento de câncer ensina a esperar.

A Lua me mostrou que só tenho o hoje. Quando ela vê um fio de cabelo no chão do tapete, é um milagre.

Ela ficou isolada tanto tempo por fazer quimio, que cada momento é uma vitória: o cinema pela primeira vez, a primeira festinha de aniversário de criança, o momento em que viu o Papai Noel... Para qualquer mãe isso é trivial, mas eu agradeci a Deus até quando ela se jogou no chão fazendo birra, por que eu poderia não ter vivido isso.

Cada conquista que vivi — andar, falar, ir à escola - foi depois do diagnóstico e, como essa dor me transformou para sempre, é tudo muito bonito. Claro que não sou uma mãe perfeita: grito, perco a paciência, me arrependo. Mas até nos momentos mais difíceis, eu agradeço.

Estou me reconstruindo. No primeiro ano, voltei para a terapia. Chorava muito. Rezava bastante e tinha muita certeza da cura, o que me manteve forte. Hoje tenho orgulho do jeito que conduzi tudo isso. Sou o porto-seguro dela quando ela precisa tomar anestesia geral, por exemplo.

Mas voltei a fazer ginástica, cuidar da alimentação. Agora estou retomando o canal no YouTube, farei um novo livro. Trabalhar tira meu foco do medo e da incerteza. Tento também meditar, algo que fazia por 30 minutos diariamente e, desde o diagnóstico, ficou difícil.

Precisei olhar para mim e ver que essa mulher também precisa de cuidado. Nossos filhos precisam que sejamos fortes para cuidar deles.

Uma mãe que passa pelo que passei perde a inocência de achar que com beijinho da mãe tudo passa. Vou viver medo e incerteza para sempre e preciso lidar com isso. Vou viver a felicidade do dia a dia e aproveito cada minuto.

Calma, fé e confiança

Tenho certeza de que o que me deu esse estofo emocional foi meu trabalho. Estudo saúde mental desde 2016: li tanto sobre isso e entrevistei tantos psicólogos e psiquiatras que fiquei mais forte, preparada para o que estou vivendo.

Cuidar da saúde mental não devia ser luxo. Eu poderia ter pirado, muitas mães perdem a cabeça com tanta angústia. Mas me mantive firme.

Quando estava aprendendo a ser mãe, recebi o diagnóstico. Já estava vulnerável por uma gestação e pós-parto na pandemia. Mas consigo acolher minha imperfeição e me sinto feliz não porque parei de sofrer, mas porque aprendi a aceitar e acolher o que não tenho controle.

A impermanência da vida é o não saber e isso me trouxe paz. Ser feliz é aceitar que na vida tem infelicidade, angústia, medo e dor.

Se eu fosse dar um conselho para mim mesma, lá atrás, diria "não se culpe por não ter visto antes".

O mais difícil nos primeiros meses foi lidar com a culpa de não ter acreditado. Quando esse pensamento vem, eu procuro pensar que a vida quis que fosse assim.

E para as mães que estão passando pelo que eu passei, eu diria para ter calma para seguir o tratamento. O governo é obrigado a pagar o transporte de pacientes para centros de referência, chama Tratamento Fora de Domicílio.

O paciente com câncer tem pressa, a doença não pode esperar. A mãe precisa ter calma, ter fé e confiar em algo: acreditar que alguém lá em cima que esta olhando por nós. Sozinha fica muito difícil.

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