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"Ele age como se nem estivesse em casa": pandemia piora desigualdades entre homens e mulheres

Getty Images/iStockphoto
Imagem: Getty Images/iStockphoto

18/05/2020 08h39

A crise do coronavírus evidenciou as desigualdades entre homens e mulheres no mercado de trabalho: com empregos mais precários, elas ficaram mais desempregadas que os homens desde março, conforme indica um estudo da OCDE publicado na quarta-feira (13).

Além disso, a pandemia levou para dentro do lar milhões de trabalhadores nos países atingidos - e, uma vez em casa, acentuou os desequilíbrios na realização de tarefas domésticas entre o casal.

"Ele age como se não estivesse em casa. É frustrante saber que o seu marido está disponível e você não pode contar com ele nem para acompanhar a sua filha para a soneca", lamenta a francesa Isabelle F., que largou o emprego desde que o primeiro dos dois filhos do casal veio ao mundo, há 8 anos. Na prática, a quarentena imposta na França desde o dia 15 de março resultou em "muito mais trabalho" para ela, já que os filhos estão impedidos de ir à escola e as bocas para alimentar no almoço se multiplicaram por quatro.

Já o marido, que trabalha com avaliação de riscos em obras, aproveitou a ocasião "para ligar para os amigos e ficar no escritório fazendo coisas dele", relata a mulher. O detalhe é que o companheiro não está em trabalho remoto: graças ao pacote emergencial de medidas disponibilizado pelo governo francês, ele pôde ficar em casa sem perder nem o emprego, nem o salário.

O tempo livre, porém, não se traduziu em mais colaboração nas tarefas domésticas, segundo Isabelle. "Ele se irrita quando as crianças fazem barulho. Já brigamos várias vezes e então ele me ajuda por uma ou duas horas, mas depois se fecha no escritório de novo", conta a francesa.

"A carga doméstica das mulheres explodiu com o confinamento, principalmente porque são elas que cuidam das refeições e também elas que acabam responsáveis por organizar as tarefas escolares dos filhos, quando o casal os têm", constata a economista Rachel Silvera, especialista em desigualdades de gênero no mercado de trabalho. A pesquisadora-adjunta da Universidade Sorbonne Paris Descartes destaca um estudo da Ugigt-CGT que mostrou que, desde a quarentena, 47% das mulheres com filhos que realizam trabalho remoto tiveram um aumento de quatro horas diárias nas tarefas domésticas e familiares, que se somam às 2h30 que elas já realizavam.

O importante dele é mais importante que o dela

Na casa da brasileira Beatriz, a quarentena também se transformou em trabalho redobrado. O marido francês, que ocupa um cargo de direção em uma empresa, dedica alguns momentos da manhã para fazer deveres com o filho do casal, de 6 anos. Porém, no resto do dia, é tudo com Beatriz - que, como o marido, está em teletrabalho desde que a pandemia se espalhou.

"Faço reunião preparando o almoço e ainda coloco a roupa para lavar. Já ele, faz as reuniões dele sempre no quarto, porque 'a reunião dele é mais importante'. Só que a importância, na verdade, é para os dois", frisa a funcionária de uma grande seguradora internacional, onde também ocupa um cargo de responsabilidade.

"Pelas 18h, dou banho do nosso filho e preparo o jantar respondendo a emails. Muitas vezes, tive que continuar trabalhando até quase meia-noite, porque não consegui tempo para acabar o que tinha para fazer durante o dia", diz a manager, que também faz as compras no supermercado e reserva as manhãs de sábado para a limpeza.

As desigualdades persistem independentemente do grau de escolarização e o nível social, apontam as pesquisas. Um estudo do Instituto Europeu pela Igualdade de Gêneros (EIGE) indicou que, em 2019, 43,4% das mulheres com baixa qualificação dedicavam pelo menos uma hora do dia para cuidar dos filhos, contra 25,6% dos homens. Entre os casais em que ambos são altamente diplomados, o índice passava para 51,8% e 28,7%, respectivamente.

"Na semana que vem, é aniversário do nosso filho. Você acha que o meu marido já pensou no que vamos fazer? Não, ele sabe que eu vou organizar a festinha, apesar de estar tão cheia de coisas para fazer quanto ele", ironiza Beatriz.

Mulheres mais afetadas pelo desemprego

Nesta quarta-feira, um relatório da OCDE mostrou impacto devastador da pandemia no mercado de trabalho é ainda mais marcante para elas. Em março, 2,1 milhões de pessoas engrossaram as estatísticas do desemprego nos países-membros da organização, uma alta que foi maior entre as populações feminina e jovem. A taxa de desemprego das mulheres passou de 5,3% para 5,8%, enquanto a dos homens cresceu de 5% para 5,3%.

Uma das explicações é que, em três quartos dos casos, o salário de mulher é inferior ao do marido - o que leva muitos casais a decidirem que, se alguém deve parar de trabalhar, será o que ganha menos. Outra razão é que os empregos das mulheres costumam ser mais precários e menos valorizados. Paradoxalmente, o trabalho de enfermeira - majoritariamente feminino e tão essencial nestes tempos de pandemia - é um dos menos bem pagos.

"Todas as noites, a gente aplaude 'os profissionais dos hospitais', no masculino. Mas sabemos muito bem que a maioria das pessoas que se escondem por trás das máscaras são mulheres", afirma Silvera, codiretora do Grupo de Estudos Mercado de Trabalho e Gênero (Mage). "Esse problema se inicia na desvalorização de diplomas de serviços, tirados em geral por mulheres, que são menos reconhecidos que os técnicos, preferidos pelos homens. Teoricamente, ambos são de nível igual de qualificação e deveriam resultar em salários iguais, mas na prática as profissões ditas masculinas são melhor remuneradas."

Setor de serviços é pouco valorizado

Atendentes, vendedoras, cabeleireiras, garçonetes, trabalhadoras no setor de turismo: apenas alguns exemplos de serviços atingidos em cheio pela crise do coronavírus, e cujos postos são ocupados majoritariamente por mulheres. "A OIT (Organização Internacional do Trabalho) prevê que essa crise vai acabar com 200 milhões de empregos no mundo e a maioria serão mulheres, que ainda ocupam muitos postos informais, precários ou em meio turno", ressalta a pesquisadora Rachel Silvera.

A carioca Alexandra Correa, 39 anos, vive na França graças aos trabalhos pontuais de limpeza ou como babá. Com a pandemia, de um dia para o outro, se encontrou sem trabalho, nem renda. "A minha sorte é que eu não tenho ninguém para sustentar, não tenho dívidas e pude fazer uma reserva financeira em fevereiro, quando trabalhei bastante. Numa situação como essa, fica bem claro que os menos favorecidos são os que sofrem primeiro", constata a brasileira.

Agora que a França relaxou as medidas de quarentena, Alexandra voltou a trabalhar, mas o ritmo ainda está bastante inferior ao que ela estava acostumada. "Sempre fiz muito baby sitting à noite, para casais que saíam para jantar. Não se sabe quando os restaurantes vão reabrir", observa. "Estou economizando tudo que eu posso para conseguir sobreviver aqui."