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Iraniana sobre protestos: 'Vou com medo pois não sei o que pode acontecer'

Mulheres iranianas colocaram fogo em seus hijabs em protesto pela morte de Mahsa Amini - Getty Images
Mulheres iranianas colocaram fogo em seus hijabs em protesto pela morte de Mahsa Amini Imagem: Getty Images

Ava* em depoimento a Natalia Eiras

Colaboração para Universa, em Lisboa, Portugal

13/10/2022 04h00

Imagens de mulheres cortando o cabelo como forma de protesto e solidariedade às manifestações que acontecem há semanas no Irã vêm circulando pelo mundo. As manifestações foram desencadeadas pela morte de Mahsa Amini, de 22 anos, em 13 de setembro - a jovem curda entrou em coma após ser detida pela "polícia da moralidade" de Teerã, por ter supostamente infringindo a lei que exige que as mulheres cubram os cabelos com um véu ou lenço. Vídeos publicados em redes sociais mostram mulheres jogando seus hijabs em uma fogueira, cortando o cabelo, entre outras demonstrações que desafiam o regime.

Uma dessas mulheres é Ava, quem ido aos protestos sem que sua família saiba. Ela, que morou por cinco anos em Vienna, na Áustria, e teve que retornar para ao seu país em 2015, sentiu o baque do regime totalitarista e chegou a ser detida pela polícia por usar um sobretudo curto. Hoje ela vai aos protestos com medo, mas muita esperança. "Você não conseguiria imaginar o quão esperançosa estou de que o futuro vai ser melhor", disse, em depoimento a Universa. Leia o relato dela a seguir:

"Sou iraniana, vou a protestos e nunca senti tanta esperança"

"Há três semanas a minha vida mudou. Não podemos voltar à situação em que estávamos há três semanas. Tudo tem mudado. Não consigo trabalhar, mal tenho dormido. A maior parte do tempo estou vendo as notícias, estudando a nossa história e tentando compartilhar todas as informações possíveis, as que julgo que sejam importantes, no Instagram.

Nossa TV fica o dia e a noite ligada em um canal chamado Iraninternational. Esta emissora está cobrindo as notícias da revolução 24 horas por dia. E, sem exagero, nós a assistimos pelo menos 18 horas por dia. Além disso, agora estou lendo e compartilhando as notícias. Esta é uma grande diferença na minha vida, porque eu nunca tinha me interessado por política. Nunca!

Há várias razões para eu não querer me envolver com política. Primeiro, porque acho que a vida é curta demais e mais importante do que qualquer ideologia, além de eu me interessar por arte e cultura, assuntos mais simples e não tão complicados quanto política. Outra razão é que, na minha família, há pessoas que dedicaram suas vidas à política e, por isso, tiveram que emigrar, não podem visitar sua terra natal. Elas estão exiladas. E eu sofri bastante por isso desde a minha adolescência.

Protestos tomaram conta do Irão contra a morte de Mahsa Amini - 	Getty Images - 	Getty Images
Protestos tomaram conta do Irã após a morte de Mahsa Amini
Imagem: Getty Images

Eu saí do Irã em 2010. Morei por cinco anos em Vienna, na Áustria, mas tive que retornar para o meu país em 2015. Ao viver na Europa, tive contato com um estado democrático e a liberdade, coisas que estavam longe de existir na minha terra natal, que vivia sob um regime fundamentalista.

Quando voltei para o Irã, foi um baque: ver como as pessoas viviam ficou ainda mais difícil e decepcionante para mim. Se eu não tivesse minhas razões para voltar a morar no Irã, eu teria desmoronado. Principalmente porque eu também tive más experiências com a polícia da moral.

"Fui detida por usar um sobretudo muito curto"

Há quatro ou cinco anos, na Praça Vanak, em Teerã, um homem veio até mim e pediu a minha carteira de identidade. Não fazia ideia de quem era e perguntei o porquê. Ele disse que estava tudo bem, que deveria apenas mostrar minha identidade. Assim que tirei a carteira da minha bolsa, ele pegou o documento rapidamente e mandou eu entrar em um carro. Naquele momento eu entendi que ele era e me senti mal por ter dado a minha identidade tão descuidadamente.

De acordo com o homem, o meu sobretudo era curto demais (era outono). Assim que entrei no carro, vi outras mulheres que, na minha opinião, estavam com roupas normais. Algumas delas estavam preocupadas, chorando e estressadas. Mas eu, por causa da minha personalidade, comecei a discutir, perguntar porque estava sendo levada. Eles não me responderam.

Então comecei a comentar indiretamente sobre eles com as outras mulheres. Disse que o dinheiro que eles ganhavam não era halal, não era merecido. E comecei a tentar fazer graça sobre eles.

Até que uma das policiais começou a me ameaçar. Disse que falaria para o supervisor dela me mandar para o centro de detenção, que eles me prenderiam e que eu passaria a noite lá. Ela estava falando tão séria e brava, que eu fiquei com medo e comecei a pedir desculpas. E fiquei calada o resto do tempo.

Fomos a uma sede da polícia da moral. Era um edifício com um salão bastante grande, com mulheres com diferentes visuais. Incluindo mulheres que, pra mim, estavam com maquiagem bastante simples, usando hijab apropriado.

Fiquei sob custódia deles por 3 horas. Eles tiraram fotos de mim em diferentes ângulos. Pediram meus dados, incluindo meu número nacional (algo semelhante ao passaporte), endereço, telefone. E eu tive que ligar para minha família e amigos para alguém levar uma roupa que eles julgassem apropriada. Assinei, ainda, um documento dizendo que não deveria repetir o delito (usar um sobretudo curto), se não eu iria para a prisão.

Por isso, agora, faço questão de me engajar na luta das mulheres iranianas. Vou aos protestos a cada dois dias. Como preparação, uso, claro, uma máscara cirúrgica e não levo nada pessoal comigo. Mesmo aquelas coisas que todo cidadão leva consigo, como telefone celular, carteiras de identidade, cartões de banco. Nada.

Tenho medo de ser identificada pela polícia. Especialmente em relação ao meu telefone, porque, caso eu seja presa, não quero que a polícia tenha acesso à minha galeria de fotos e contas nas redes sociais. Tenho muito medo de ser identificada. Mesmo as iranianas que moram aqui estão com medo de sofrer algum tipo de repressão por compartilhar informações contra o governo. Mas isso não me impede de participar dos atos.

"Minha família não sabe que tenho participado dos protestos"

Quando vou aos protestos eu me sinto extraordinariamente animada e, claro, com medo. Não faço ideia do que pode acontecer, mas eu não penso sobre isso. Tento ser o mais cuidadosa possível. Assim, fico no máximo duas horas nos protestos. Lá, eu vejo pessoas comuns, como eu. Um cidadão médio da sociedade iraniana. É claro que há muitos jovens, principalmente universitários, mas há também pessoas de meia-idade.

Mulheres são as figuras centrais das manifestações que pedem mais liberdade - Getty Images - Getty Images
Mulheres são as figuras centrais das manifestações que pedem mais liberdade
Imagem: Getty Images

Minha família não sabe que tenho participado dos protestos. Não conto a eles porque eles poderiam me impedir de ir. Em vez disso, ligo para amigos próximos e conto a eles onde vou. E tento não ir sozinha, sempre vou com alguma pessoa de confiança.

Um dos momentos mais assustadores que passei nas manifestações foi quando a polícia chamou as forças especiais, a Yegane Vizhe, para nos combater. Eles bateram nas pessoas, não importando se era jovem ou velho, homem ou mulher. Eles agrediram brutalmente com cassetetes em nossas cabeças.

Desde a morte de Mahsa Amini, no entanto, não vi ou tenho ouvido falar sobre a polícia da moral. Eles estão com medo! Por outro lado, a repressão tem sido feita por militares sem farda, à paisana, que estão nas ruas e combatem os protestos.

"Acesso a internet é restrito"

O que nos deixa bastante angustiados, também, é a possibilidade das pessoas fora do Irã não saberem o que está acontecendo aqui. Para compartilhar informações na internet, tenho que usar uma VPN, que não é barata. Sem a VPN, não tenho acesso a sites e aplicativos estrangeiros. Consegue imaginar? Teríamos acesso apenas a páginas que estejam hospedadas no Irã.

Este é o início de um projeto chamado 'Internet Nacional', em que o governo tem trabalhado por anos e que está colocando em prática agora. O preço da VPN começa a partir dos 10 dólares, o que não é barato para a maior parte das pessoas. Temos um problema sério com inflação e o valor da nossa moeda só cai. Atualmente, um dólar custa por volta de 42 mil riais [o salário mínimo é por volta de 930 mil riais].

"Só vivendo no Irã para entender o que estamos passando"

Há diferenças na minha vida que são muito óbvias e claras, mas eu gostaria de citar alguns sentimentos que eu nunca tinha sentido tão fortemente quanto neste momento. O primeiro deles é esperança. Você não conseguiria imaginar o quão esperançosa estou de que o futuro vai ser melhor. É algo surpreendente para mim, porque eu não tinha esperança no meu povo.

Além disso, a segunda sensação que tem me tomado é o amor. Nunca soube o quanto eu amava o meu povo e tudo o que tínhamos tanto em comum. Eu não sabia que a maioria do meu povo é tão escolarizado, compreensivo e sábio. O que me leva ao respeito que tenho sentido pelos iranianos.

Mesmo agora eu não quero ser uma ativista política, mas não há outra escolha para nós. Se eu não fizer nada, não poderei me perdoar. Não é uma questão de posicionamento político, mas de humanidade e direitos humanos básicos.

Eu poderia continuar falando sobre como estes dias são surpreendentes, mas nem todo mundo entenderia. Seria preciso não só estar aqui, mas ter vivido no Irã nos últimos 40 anos para compreender o que estamos presenciando. Para sentir o que estou sentindo nesse momento." Ava, 33, professora de alemão e pintora, mora em Teerã

Sobrenome foi omitido a pedido da entrevistada