Onde o poder público não vai, mulheres se unem por vítimas de violência
A advogada alagoana Almerinda Farias Gama foi uma das pioneiras no Brasil na atuação de mulheres negras na política brasileira, e na participação do processo de formação de uma Assembleia Constituinte, em 1934. Por essa defesa às mulheres o Movimento Olga Benário, atuante há 11 anos contra a violência de gênero, deu o nome da militante à primeira ocupação de mulheres do Rio de Janeiro, inaugurada em 8 de março último. Com esse espaço já são dez espalhados pelo país.
"Ser atendida por outra mulher é diferente. Você se sente realmente protegida, em casa", reforça a Universa uma vítima de violência psicológica atendida ali.
Localizado na Rua da Carioca, onde funcionava a tradicional loja Guitarra de Prata, o espaço de dois andares que lembra um casarão antigo serve de acolhimento e ainda reúne psicólogas e assistentes sociais para atender a quem necessita ajuda profissional, de forma remota ou presencial. E se precisar fazer encaminhamentos como um registro de boletim de ocorrência na delegacia, terá sempre alguém para acompanhar. Para além disso, ali são debatidas políticas públicas para mulheres.
"Fui perdendo minha identidade"
A advogada Larissa Santana, de 33 anos, foi uma das primeiras vítimas de violência de gênero atendidas no local. Após oito anos de relacionamento e muitas humilhações, ela decidiu pedir a separação em fevereiro último. Mas não ganhou apoio.
"Ele sempre me colocava para baixo, falava do meu cabelo, do meu corpo. Quando passei no mestrado após três anos tentando ele insinuou que foi o professor que me ajudou. Nada era mérito meu. Mas quando decidi me separar, as pessoas com quem conversava, inclusive mulheres, falavam que homem era assim mesmo, para relevar, e fui perdendo minha identidade."
Larissa então buscou uma terapia e seguiu firme na decisão de se divorciar, no início deste ano. Ela conta que a conversa com o ex foi tranquila, que os dois até viajaram para decidir tudo em clima de paz, até que um dia de março ela chegou do trabalho e o encontrou transtornado. Ele estava acompanhado da mãe e, aos gritos, a acusou de traição e deu uma hora para ela sair do local.
"Ele ainda mandou um e-mail como se eu tivesse já saído de casa, e depois entendi que como estávamos no processo de compra de um apartamento pensei que o e-mail serviria para alegar uma separação de corpos para eu não ter direito ao imóvel. Então não saí do apartamento e dormi com minhas coisas no chão da sala, até conseguir a chave do nosso imóvel, e estou lá até hoje", relata ela.
"Pensei em morrer"
Nas semanas em que morou sob o mesmo teto do ex, ela detalha que ouviu xingamentos diversos e sequer conseguia dormir, porque ele ligava a TV em um volume alto para atrapalhar seu sono, e acendia as luzes de madrugada. Ainda jogou fora sua comida.
Ao ver o sofrimento de Larissa, professoras do seu curso de mestrado em planejamento urbano e regional, na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), indicaram a ocupação Almerinda Gama para ela poder se abrigar. Larissa escolheu não dormir no espaço, mas desde março vem sendo acompanhada por uma psicóloga voluntária do local.
"Estava tão exausta que pensava que se morresse seria mais fácil. Tinha vontade de me jogar da ponte. E a violência psicológica é muito silenciosa. Tanto que muitos amigos acreditaram nele. Ele virou um coitado abandonado pela mulher. Se não fossem essas pessoas não sei se teria conseguido, porque não comer, dormir nem saber para onde vou por causa de uma pessoa com quem viveu anos a fio é muito doloroso."
Larissa não fez boletim de ocorrência contra o ex, mas conseguiu diretamente na Justiça uma medida protetiva para que ele não mais a procure.
Como grupo ocupa os espaços abandonados
Ao todo, o Movimento Olga Benário já ocupou dez espaços abandonados pelo Brasil, número maior que o de Casas da Mulher Brasileira, projeto criado em 2013 durante o governo Dilma Rousseff (PT) para integrar rede de atendimento a vítimas de violência de gênero. A ideia era ter uma unidade em cada estado e na capital até 2018. Hoje, o Brasil conta com oito delas, e em 2019 a então ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves anunciou que não tinha dinheiro para custear o projeto.
Fora a falta de abrigos para mulheres em situação de violência, há escassez de muitos outros serviços voltados para o atendimento a essas pessoas, como delegacias de polícia especializadas. Segundo dados do IBGE, dos 5,5 mil municípios brasileiros, apenas 427 têm uma delegacia de Atendimento à Mulher. Essas unidades só existem para 7% das cidades do país.
E é exatamente onde o poder público não chega —ou falha— que grupos de mulheres da sociedade civil atuam.
"Ocupamos esses espaços para denunciar a violência e avisar que precisamos de políticas públicas voltadas para as mulheres. É um espaço pensado por um movimento social que sabe realmente o que resolve, porque o estado não quer resolver", afirma Dani Ramos, coordenadora do Movimento Olga Benário e da Ocupação Almerinda Gama.
Dani, que é também estudante de serviço social, frisa que as ocupações não são aleatórias. O grupo pesquisa por propriedades públicas abandonadas e se certifica quanto à segurança do local. Essa do Rio, por exemplo, estava vazia havia oito anos, mas em bom estado de conservação. Com apenas uma cama à disposição, o grupo agora está montando o espaço para receber mais gente.
E nada ali é bancado pelo poder público ou partido político. Frequentadores e apoiadores se juntam para pagar ou doar da água à conta de luz. "A gente está literalmente dando vida a esses prédios ao fortalecer as mulheres e evitar feminicídios", decreta Dani.
Prefeitura de Mauá derruba ocupação
Como qualquer ocupação, o grupo corre risco de ser despejado. E já aconteceu com uma das unidades. Em março último, a prefeitura de Mauá, em São Paulo, interditou e depois demoliu a casa da Mulher Negra, referência de apoio a vítimas das enchentes e mulheres em situação de vulnerabilidade. No dia da interdição havia uma mulher com três filhos e uma neta, e que foram expulsas pela GCM (Guarda Civil Metropolitana). Um Auxílio Aluguel foi disponibilizado à família, a pedido do Movimento.
A responsável pelo espaço, Carol Vigliar, diz que a demolição foi ilegal, e que sequer tinha justificativa para a ação.
"Depois disseram que o prédio corria risco de desabar. É uma mentira, porque além de termos laudo feito por especialistas o imóvel estava abandonado havia anos e nunca tinham se preocupado com isso. Hoje o espaço está abandonado e frequentado por usuários de drogas."
"Não existe uma política habitacional na cidade e a prefeitura não oferece solução", finaliza.
Universa procurou a prefeitura de Mauá por e-mail e por telefone, e aguarda posicionamento.
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