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Aborto legal libera sistema de saúde na pandemia, diz ministra argentina

Elizabeth Gómez Alcorta ministra Ministério das Mulheres, Gêneros e Diversidade na Argentina  - Divulgação
Elizabeth Gómez Alcorta ministra Ministério das Mulheres, Gêneros e Diversidade na Argentina Imagem: Divulgação

Maria Angélica Oliveira

colaboração para Universa em Lima, Peru

20/09/2021 04h00

Fazia três meses que a advogada Elizabeth Gómez Alcorta comandava o recém-criado Ministério das Mulheres, Gêneros e Diversidade na Argentina quando a OMS (Organização Mundial de Saúde) decretou pandemia devido ao coronavírus, em março de 2020. A quarentena veio acompanhada de uma grave crise: o país se aproximava do terceiro ano seguido de recessão e já não tinha acesso a crédito internacional por conta da dívida externa. Ao final de 2020, quatro em cada dez argentinos estavam abaixo da linha de pobreza e a inflação atingia 36%. Mas nem a pandemia nem a deterioração da economia foram empecilhos para que se iniciassem medidas e programas de igualdade de gênero.

"Pelo contrário. É na crise que se deve garantir que todas e todos tenham acesso aos direitos", argumenta Alcorta, de 48 anos, feminista, militante de esquerda e defensora dos direitos humanos.

Foi preciso agir rápido. Foram abertos mais canais para atender vítimas de violência e criados auxílios para a população travesti e trans, que até então vivia da prostituição. Em outras frentes, foram criados um programa de auxílio financeiro para vítimas de violência, cotas de emprego para pessoas trans no serviço público, e um documento de identidade não binário. Mas o maior avanço nas políticas de gênero foi a legalização do aborto, em dezembro de 2020, por meio de um projeto do governo enviado ao Congresso.

Recentemente, foi adotada outra medida que trará mudanças estruturais: o cuidado com os filhos foi reconhecido como trabalho e passará a ser contado como tempo de contribuição para mulheres que já estejam em idade de se aposentar (60 anos) e não tenham os 30 anos de trabalho formal exigidos. Serão contabilizados um ano para cada filho nascido vivo e dois anos para cada filho adotado.

As medidas não são planejadas apenas dentro do Ministério das Mulheres. Há um gabinete nacional para discutir gênero e fazer com que todas as políticas públicas tenham esse recorte. O orçamento do país, por exemplo, passou a ser elaborado sob essa perspectiva.

Engajada na política desde a juventude, a ministra passou os últimos anos advogando por vítimas da ditadura militar argentina, lutando pelos direitos da população indígena e defendendo líderes de movimentos sociais.

Mãe de um menino e professora universitária, ela discute temas como androcentrismo no direito e criminologia feminista, é presença frequente em manifestações de rua e observadora da política latino-americana. Nas redes sociais, homenageou a vereadora Marielle Franco, assassinada no Rio de Janeiro em 2018, e postou #LulaLivre quando a Justiça anulou as condenações contra o ex-presidente.

Recentemente, abriu o curso "Misoginia como Arma de Disciplinamento Político", com uma aula ao lado da ex-presidente Dilma Rousseff na Elag (Escola de Estudos Latino-americanos e Globais). "Não tenho dúvida de que, dentre múltiplos fatores que tiveram incidência no processo de impeachment, também houve essa carga enorme de misoginia", afirma.

Na entrevista concedida a Universa, a ministra destaca os principais pontos dessa revolução de gênero latina.

UNIVERSA: Como vê as críticas de que algumas das medidas de igualdade de gênero não deveriam ser a prioridade agora, no meio de uma pandemia e crise econômica?

Elizabeth Gómez Alcorta: A agenda de gênero vem com muito atraso em todos os âmbitos - trabalhista, político e de acesso a direitos. Uma crise nunca pode ser motivo para não avançar. Pelo contrário, é quando se deve avançar para que todos e todas tenham acesso a direitos. Agora é possível ter acesso ao aborto seguro e gratuito no meio de uma pandemia. É o direito mais importante que conquistamos nas últimas décadas e que conseguiu acabar com cerca de 40 mil internações hospitalares como resultado de abortos clandestinos por ano. Isso libera parte do sistema de saúde. O programa Acompanhar ajuda com um salário mínimo (US$ 289 na cotação de 13 de agosto), por seis meses, para as mulheres que estão em risco por situação de violência e em vulnerabilidade econômica. São mais de 25 mil atendidas. Em uma crise, essa vulnerabilidade é maior e, por isso, nós temos mais risco de estar em uma situação de violência de gênero.

Como vai o processo de implantação do acesso ao aborto?

Hoje, o aborto é realizado em todo o país. Nesses sete meses em vigor, ampliamos de 960 para 1.160 lugares da rede pública onde se realiza o procedimento. As instituições sociais ou particulares [de saúde] têm a obrigação de atender ou redirecionar a paciente a um lugar onde seja atendida. Há cidades onde isso está funcionando muito bem e outras onde é mais difícil por resistência dos profissionais, por objeção de consciência.

Quando começou a pandemia, como foram pensadas as principais estratégias de política de gênero?

Tínhamos que expandir canais para que as mulheres que conviviam com agressores pudessem pedir ajuda. Trabalhamos com um número de WhatsApp porque a linha telefônica te obriga a falar e, se você está diante do agressor, é impossível. A partir de algumas gestões do ministério, cada instância judicial decidiu que renovaria as medidas protetivas [para vítimas de violência] de forma automática.

Fizemos uma campanha de corresponsabilidade pelo fato de que recaem sobre as mulheres as tarefas de cuidado, e isso se agravou com as crianças em casa. Atuamos com o Ministério do Trabalho quando não queriam pagar o salário das trabalhadoras domésticas porque elas não estavam indo trabalhar. Atendemos as mulheres vítimas de violência e a população travesti e trans, que não tinham como assegurar o mínimo para alimentação. Não tínhamos nenhuma dessas medidas em vista quando chegamos ao ministério, três meses antes da pandemia. A pandemia nos obrigou a repensar as políticas sobre tarefas de cuidado, violência e manutenção da vida.

mãe - iStock - iStock
Maternidade contribui com até 20% do PIB na Argentina
Imagem: iStock

Como as tarefas de cuidado impactam a desigualdade de gênero? Qual será o efeito do reconhecimento das tarefas de cuidado como contribuição no gasto público?

O desequilíbrio nas tarefas de cuidado explica grande parte da desigualdade salarial, da feminização da pobreza e das diferenças no momento da aposentadoria. Dedicamos o triplo do tempo dos homens a essa tarefa não remunerada. Nossa renda média é menor, nossas chances de conseguir um emprego e de que ele seja formal, também. As horas que dedicamos ao emprego são menores (dez horas menos que os homens por semana, em média) e interrompemos muito mais nossa carreira.

Quanto mais filhos temos, acumulamos menos anos de contribuição. O trabalho de cuidados contribui com 16% a 20% do PIB, e é bom que as mulheres que cuidaram recebam, na velhice, parte dessa riqueza que ajudaram a gerar. É uma medida que impulsiona a distribuição de riqueza. Quando não são feitos esses reconhecimentos, as mulheres são deixadas em situação de vulnerabilidade e o Estado tem que gastar em outras políticas para protegê-las.

Apesar de todas as medidas, as taxas de feminicídio seguem altas na Argentina.

No ano passado, tivemos uma taxa ligeiramente menor que no ano anterior sem pandemia (1.1 caso por 100 mil habitantes em 2019, e 1.09 em 2020). Para poder baixar as taxas de feminicídio e travesticídio, são necessárias políticas que perdurem e trabalhar com transformações culturais, que são a base da violência. Comentários machistas e violentos agravam a violência. Para enfrentar isso, o ministério apresentou um Plano Nacional contra a Violência com 140 compromissos, onde se procura trabalhar em dois tempos. Primeiro, em médio e longo prazo. Segundo, no curto prazo, com o programa Acompanhar.

Então crê-se que se começaria a reduzir as taxas de feminicídio em médio ou longo prazo.

Se você vive em uma cultura machista, tem mais chance de ser vítima do que em uma sociedade igualitária. A intervenção do Estado nas situações de violência é crucial. Se você vai a uma delegacia e lá te dizem que não é ali que se deve fazer a denúncia, isso agrava os riscos. Com menos autonomia econômica, você tem mais riscos, [por exemplo] quando não consegue sair de uma situação violenta porque não tem trabalho, tem muitos filhos e não tem onde viver.

Esses três aspectos não se podem modificar em um, dois ou três anos. A pandemia agrava essa situação: a América Latina tem 22 milhões de novos pobres, e a maioria é mulher. Estamos trabalhando na questão cultural e também em como o Estado responde à violência. Não há política mágica contra o feminicídio. Não se pode resolver apertando um botão. Imaginar que a criação de um ministério vai resolver do dia para a noite é subestimar o que estamos falando.

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Elizabeth Gómez Alcorta, ministra de Mulheres, Gênero e Diversidade da Argentina
Imagem: Reprodução/Instagram


A Argentina tem uma lei de licença-maternidade de 90 dias e de dois dias para licença paternidade. E cerca da metade dos argentinos não podem ter acesso a isso porque são autônomos ou monotributistas (regime que não contempla certos direitos trabalhistas). Como o governo pensa em ampliar a licença?

As licenças na Argentina não são apenas patriarcais, mas também excluem os diversos tipos de família e os diferentes formatos de trabalho. Precisamos que o reconhecimento do tempo para cuidar seja igual para todos os gêneros e trabalhadores. Senão, passar pela experiência da maternidade não apenas piora a distribuição de tempo entre homens e mulheres, mas também acentua a desigualdade entre as próprias mulheres: entre as que têm um trabalho formal e ganham bem, e as que não. Estamos trabalhando na mesa interministerial de políticas de cuidado, e as licenças estão na nossa agenda de trabalho.

Acompanha a política no Brasil? Qual sua opinião sobre o processo de impeachment de Dilma Rousseff?

Acompanhei o impeachment quando aconteceu. Não tenho dúvida de que, entre outros fatores, múltiplos fatores que tiveram incidência no impeachment, também houve essa carga enorme de misoginia, que esteve às claras todo o tempo. Dilma sempre foi atacada e, em particular, por ser mulher quando o Brasil não havia tido antes na história uma mulher presidente.