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Médica de MG cria primeiro serviço de aborto legal por telemedicina do país

Para garantir o direito ao aborto às vítimas de estupro na pandemia, a ginecologista Helena Paro, da Universidade Federal de Uberlândia, usou a telemedicina - Arquivo pessoal
Para garantir o direito ao aborto às vítimas de estupro na pandemia, a ginecologista Helena Paro, da Universidade Federal de Uberlândia, usou a telemedicina Imagem: Arquivo pessoal

Camila Brandalise

De Universa

07/04/2021 04h00

A ameaça de fechamento do serviço de aborto legal coordenado pela ginecologista e obstetra Helena Paro no Hospital das Clínicas de Uberlândia (MG), em março de 2020, a obrigou a pensar em alternativas para não deixar as mulheres que a procuravam na mão. O Brasil autoriza o aborto em três situações: em caso de estupro, de anencefalia e de risco de vida à mulher, e, no início da pandemia, a interrupção legal da gravidez não era considerada serviço essencial na área da saúde.

Helena impediu que o atendimento presencial fosse interrompido no período, mas ainda assim sabia que precisava lançar mão de um plano B. Começou a elaborar um projeto para poder realizar interrupções de gravidez à distância, a exemplo do que fizeram o Reino Unido e os Estados Unidos na quarentena.

Na esteira da lei brasileira que autorizava o serviço de telemedicina, sancionada em abril de 2020, a ginecologista apresentou sua proposta em maio e, após contornar ressalvas e desconfianças de superiores, conseguiu aprová-lo em agosto. O serviço é oferecido pelo Nuavidas (Núcleo de Atenção Integral a Vítimas de Agressão Sexual) e faz parte da UFU (Universidade Federal de Uberlândia).

Agora, a médica mineira e um grupo de profissionais de diferentes estados brasileiros querem replicar a iniciativa em outros nove centros de saúde do país. Além de estender o projeto, o objetivo é que esse tipo de serviço continue sendo oferecido mesmo após a pandemia.

Queremos provar, com evidências científicas, que o aborto orientado por telemedicina é tão eficaz e seguro quanto o realizado no hospital e traz menos custos para o sistema de saúde", diz Helena. "Além disso, as mulheres preferem dessa maneira, porque evita a internação e assim elas não ficam sujeitas ao escrutínio de uma equipe de saúde que não está preparada para lidar com seu caso."

Como funciona o teleaborto

A ginecologista contou com apoio jurídico das advogadas do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero Anis para montar um protocolo que seguisse à risca toda a legislação brasileira tanto em relação ao aborto quanto aos serviços de saúde prestados durante a pandemia.

A primeira consulta com a gestante é presencial, com um atendimento interdisciplinar feito por psicólogas e assistentes sociais, além de médicas, para explicar como funciona o procedimento. A paciente recebe três doses de um medicamento que induz ao aborto, as orientações de como e quando usá-lo e as informações sobre os possíveis efeitos colaterais. Além disso, ela recebe uma lista com os contatos da equipe médica, que fica disponível 24 horas para qualquer emergência e para tirar dúvidas.

"Além de orientação verbal e por escrito, enviamos também cards com ilustrações por Whatsapp, para facilitar ao máximo o entendimento do processo", diz Helena. Um dia após o uso das três doses, uma nova consulta remota é marcada para a médica saber se correu tudo bem.

O método é usado em gestações de até nove semanas — esse é o período em que é garantida a segurança do uso desse medicamento, segundo a literatura médica. Cerca de 80% das pacientes que procuram o serviço do Hospital das Clínicas de Uberlândia (MG) se encontram nessa faixa gestacional.

Desde agosto, 15 mulheres passaram pelo procedimento de aborto domiciliar, com 100% de sucesso uma vez que em nenhum caso foi necessário cirurgia complementar.

Foram internações que conseguimos evitar, não precisei de leito de hospital, não demandou profissionais em um momento tão delicado para o sistema de saúde", diz Helena.

A médica conta que chegou a pedir autorização para que os remédios fossem entregues a domicílio, sem necessidade de consulta presencial, mas que essa possibilidade não foi aprovada. "Tive reuniões com a Comissão de Ética do hospital, com equipe de farmacêuticos, porque não queriam nem que a gente entregasse três doses do medicamento ao mesmo tempo. Quem questiona isso nunca atendeu uma vítima de estupro que gostaria de interromper a gravidez. O que elas mais querem é seguir todas as orientações para dar um fim à gestação", afirma a médica.

"Mito da mulher que inventa estupro para abortar não se sustenta"

A advogada Gabriela Rondon, da Anis, que dá suporte jurídico à equipe médica de Helena, explica que o pedido para entrega dos remédios na casa da mulher também seguia uma regulação da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), que permitia que isso fosse feito mesmo com medicamentos de uso restrito.

"Mas sabemos que há todo um mito da mulher mentirosa, de que o relato de estupro seria inventado", diz a advogada. "Porém, o acesso ao serviço só é permitido quando há a certeza, por parte dos profissionais, que a vítima se encaixa nas hipóteses legais, mesmo no caso da telemedicina", afirma Gabriela, que reforça a importância do projeto seguir mesmo com o fim da pandemia.

"Temos déficit de serviço de aborto legal. Na pandemia ficou pior, com fechamentos de ambulatórios. Há estados sem um único centro de referência, a maioria fica em capitais", diz a advogada. Hoje, o Brasil conta com menos de 50 serviços de aborto legal disponíveis e espalhados entre os cerca de 5.000 municípios

Segundo o manual da OMS (Organização Mundial da Saúde) para tratamento humanizado em casos de abortos legais e seguros, se a gestação for de até nove semanas é recomendado que a mulher escolha o lugar de sua preferência para o procedimento. "Entendemos que a casa, na maioria das vezes, é o melhor ambiente."

"Após aborto, vejo que elas renascem"

Helena é coordenadora-geral do Nuavidas, núcleo criado por ela no hospital da Universidade Federal de Uberlândia em 2017, depois de atender uma jovem estuprada pelo primo que foi impedida de interromper a gravidez sob argumento de que era preciso registrar um boletim de ocorrência.

"Ela foi encaminhada a mim para fazer o pré-natal porque não queria ir à polícia. Mas, quando me contou o que havia acontecido, decidimos desbravar esse serviço. O Ministério Público Federal entrou com uma representação, e o hospital foi obrigado a realizar o aborto", relembra.

Nesses quase quatro anos de trabalho na área, a ginecologista diz ver que as pacientes, a maioria entre 20 e 30 anos, voltam à vida após o procedimento.

Elas chegam sofridas, como se estivessem mortas, sem brilho no olhar, sem vontade de viver, desistindo de tudo. A mudança é nítida e aparece em todos os perfis, classes e idades."

Das lembranças que ela guarda dos atendimentos, uma é deste ano, em um procedimento feito remotamente. "Uma mulher que já tinha dois filhos pequenos chegou aqui e dizia ter muito medo de que algum conhecido descobrisse que ela tinha sido estuprada e estava em um serviço de aborto", lembra."Era uma moradora do interior de Minas Gerais. Foi violentada por meio de um recurso que temos visto muito, colocam algo na bebida da mulher, ela não sabe o que aconteceu, nem se lembra de ter tido relação sexual, e, de repente, aparece grávida", conta.

O alívio da paciente ao saber que poderia levar os remédios para casa, realizar o procedimento à noite e de maneira totalmente privada, assim como os vários agradecimentos de mulheres a cada novo atendimento, é o que, segundo a médica, a faz encontrar sentido para continuar brigando pelo serviço que presta.

"O que faço hoje me dá a sensação de que estou cumprindo meu papel de médica por estar ao lado das mulheres, evitando que elas morram e as vendo renascer."