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Mulher na obra? Ainda raras, pintoras causam estranhamento no setor

Sueli Pessoa tem 58 anos e é pintora há 37; ela não vê machismo no setor, apesar de já ter ouvido de um colega que "nunca viu mulher em obra" - Arquivo pessoal
Sueli Pessoa tem 58 anos e é pintora há 37; ela não vê machismo no setor, apesar de já ter ouvido de um colega que "nunca viu mulher em obra" Imagem: Arquivo pessoal

Mariana Gonzalez

De Universa, em São Paulo

11/12/2020 04h00

"Na hora do almoço, um dos meninos [pedreiros] sentou perto de mim, me olhando estranho, meio acanhado. Tentei puxar assunto e ele falou: 'Nunca tinha visto uma mulher na obra'".

A história, vivida pela pintora Sueli Pessoa, tem mais de 20 anos, mas não é muito diferente do que vivem hoje as pintoras de parede. Na semana passada, Maria Izabel de Sousa, ouviu de um cliente com quem fazia orçamento que, se ela fosse pintar, "só se fosse pintar o sete".

Universa ouviu três profissionais que, em comum, escolheram a profissão depois de anos exercendo outro trabalho, e amam pintar paredes. Mas diferem (e muito) em suas percepções sobre machismo na área.

A primeira pincelada

Maria Izabel de Sousa, de 51 anos, aprendeu a profissão com o pai, que era pintor, mas não queria que a filha seguisse os mesmos passos.

"Eu via papai pintando, e quando ele largava o pincel eu dava minhas pinceladas, levava jeito. Mas ele dizia que eu tinha que estudar. Antigamente, pintor era dado como peão, como Zé Ninguém. Me tornei enfermeira, trabalhei em hospital, mas quando meu pai morreu, há dez anos, virei pintora de vez", conta.

Pintora Maria Izabel - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Maria Izabel tem 51 anos e é pintora há 10
Imagem: Arquivo pessoal
Pintora maria izabel - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Ela aprendeu a profissão com o pai
Imagem: Arquivo pessoal

Ela passou alguns anos se dividindo entre as funções no IML (Instituto Médico Legal), como necropsista patológica, e em cima da escada, pintando paredes em obras. Há cinco anos, exerce apenas a segunda função, que é sua preferida. O que ela mais gosta de fazer é ficar "pendurada" na cadeirinha, para pintar paredes de prédios.

"Em 14 anos de enfermagem não comprei nada, mas em nove meses como pintora consegui dar entrada na minha casa própria. Minha filha conseguiu se formar através do meu trabalho. Isso não tem preço".

Também foi depois de anos em outra profissão que Sheila Camargo, de 45 anos, foi parar na obra, levada pelo marido, que é pintor. Ela trabalhou quase três décadas em óticas, mas quando mudou de cidade não conseguiu se manter no ramo.

"Um dia fui para a obra com ele, para ajudar na limpeza, e lá fiquei. Fui arriscando fazer uma coisa aqui, outra ali, peguei gosto, e fui fazer curso". Há dois anos, deu sua primeira pincelada solo.

"Alguns ainda se espantam. Quando me vê, minha mãe pergunta se eu não tenho saudade de usar salto, cabelo escovado, ter a unha feita. Mas não tenho saudade não".

Sueli Pessoa, de 58 anos, por sua vez, se tornou pintora há 37, depois de estudar arquitetura, por conselho do pai — e, apesar de ainda assinar projetos, dedica a maior parte do tempo à pintura de paredes. Ela se especializou em acabamentos 3D e pinta, à mão, textura de mármore tão realista que faz parecer que a parede é feita de pedra.

"Sofri muito para estudar arquitetura, o que eu gosto mesmo é de colocar a mão na massa. Quando meu pai fazia algum reparo em casa, gostava de me jogar na areia, encostar no cimento", lembra.

Pintora Sueli - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Sueli é arquiteta, mas se realiza pintando paredes
Imagem: Arquivo pessoal
Pintora Sueli - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Ela exerce a profissão há quase 40 anos
Imagem: Arquivo pessoal

Uma mulher, 99 homens

Sheila percebe que, entre pintores, ainda há "uma mulher para 99 homens" — o que não está muito longe da realidade. Apesar de não haver dados concretos sobre a presença de mulheres no setor, apenas 5% dos 20 mil inscritos no Programa Pintar o Bem, criado pela Suvinil em parceria com o CIEDS (Centro Integrado de Estudos e Programas de Desenvolvimento Sustentável), eram pintoras.

Apesar de ser minoria, Sheila nunca se sentiu desrespeitada na profissão. Sueli também não: "O pessoal fala que é um universo muito machista e acho que as mulheres têm medo da discriminação, por isso são minoria na profissão, mas na prática vejo pouco preconceito".

Pintora Sheila - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Sheila aprendeu com o marido
Imagem: Arquivo pessoal
Pintora Sheila - Divulgação/Suvinil - Divulgação/Suvinil
Sua parte preferida são os acabamentos
Imagem: Divulgação/Suvinil

Maria Izabel, que chefia uma equipe de dez homens, tem uma percepção bem diferente: "Os mais novos [no grupo] estranham ser mandados por uma mulher, tem os engraçadinhos que passam cantada, confundem as coisas, e eu explico que não é assim que funciona. Outros não me deixam pegar peso, descer com a lata, subir em lugar alto. Mas eu falo 'pera aí'. Nós somos dadas como sexo frágil, mas não somos frágeis coisa nenhuma".

"Quando vou a uma loja comprar tinta, o vendedor quer saber mais do que eu. Fala 'esse e aquele são a mesma coisa', achando que eu não entendo de material. O preconceito vem dos clientes também: até hoje recebo muito não".

Ela também não tem o apoio da família: "Dizem que sou louca por ter largado a enfermagem para viver como homem. Eles chegam a contratar pintores homens para fazer reparos em casa, e não me contratam".

Celdia Bittencourt, gerente Sênior de Insights Técnicos & Marketing Services da Suvinil, disse à Universa que ainda é cedo para afirmar que há uma tendência de mais mulheres na pintura, mas que "elas estão cada vez mais ativas no setor" e que "os clientes vêm enxergando cada vez mais como natural a presença delas no mercado".

Ela acredita, ainda, que "as mulheres são muito centradas e exigentes com o próprio trabalho, estão sempre preocupadas em realizar uma tarefa impecável" e que, por isso, há clientes que têm preferência pelo serviço feito por mulheres.

"Temos ainda uma longa jornada a ser percorrida, mas é fato que esse movimento já foi iniciado", percebe.