Topo

Retratos

Instantâneos de realidade do Brasil e do mundo


A "origem divina" do vírus: a pandemia pelos olhos de duas evangélicas

Igreja evangélica vazia na zona norte do Rio - Herculano Barreto Filho - 26.mar.2020/UOL
Igreja evangélica vazia na zona norte do Rio Imagem: Herculano Barreto Filho - 26.mar.2020/UOL

Sílvia Gonçalves

Colaboração para Universa

14/05/2020 04h00

"Foi Deus quem permitiu esse vírus", diz a diarista Laurelândia Pereira, 41, moradora de um bairro pobre em Campos dos Goytacazes (RJ), sobre a epidemia de Covid-19. Integrante de uma das dezenas de igrejas pentecostais situadas na região onde mora, ela é uma das milhares de evangélicas brasileiras, religião majoritariamente feminina e negra.

Laurelândia teve a rotina radicalmente alterada com a propagação rápida da doença. Devido à suspensão dos eventos religiosos, adaptou suas práticas de devoção. Antes, acostumada a frequentar os cultos cerca de quatro vezes por semana, agora lê a Bíblia reunida com seus seis filhos, os quais sustenta sozinha. Na nova rotina, agora também assiste às lives gravadas pelo seu pastor.

Embora acredite que a doença seja uma forma de "correção" divina para que "o povo volte à santidade", Laurelândia defende a quarentena e critica as últimas ações do presidente Jair Bolsonaro.

"Nem as autoridades nem o presidente têm direito de fazer pouco caso da doença", argumenta. "Eu vejo o presidente com um certo pouco caso em relação ao povo. Ele vai nas entrevistas e fala, várias vezes, que o povo está muito apavorado. Como se essa doença fosse uma coisa não muito grave", diz ela, que se preocupa especialmente com a saúde dos filhos.

Pandemia como ensinamento divino

Também moradora de Campos dos Goytacazes e também evangélica, a cabeleireira Clara Silva, 30, acredita que a epidemia de Covid-19 foi uma "permissão de Deus" e que a pandemia é uma forma de ensinamento aos seres humanos. "Tudo de bom e de mal existe porque Deus permite, para nos ensinar, inclusive essa doença", explica.

Assim como Laurelândia, Carla está afastada dos cultos, mas defende a política de isolamento social, inclusive o fechamento dos templos. "Tenho saudade sim dos cultos. Sei como é difícil a distância. Mas a saúde vem em primeiro lugar."

Culto de Silas Malafaia - Herculano Barreto Filho/UOL - Herculano Barreto Filho/UOL
Em imagem de 19 de março, culto promovido pelo pastor Silas Malafaia reúne 350 fiéis
Imagem: Herculano Barreto Filho/UOL

Carla conta que tem uma filha pequena, e já sente o impacto financeiro da pandemia. "É complicado, mas se o Ministério [da Saúde] diz para ficar em casa, é para ficar em casa. A vida em primeiro lugar", diz.

Laurelândia e Carla não são um retrato das evangélicas, mas suas posturas demonstram como o campo religioso é complexo, sobretudo neste momento, em que discursos diferentes tentam se impor.

São também um indicativo dos limites da capacidade de penetração do discurso de Bolsonaro sobre o coronavírus, já que os evangélicos tendem a relativizar mais a gravidade da pandemia, de acordo com uma pesquisa do Datafolha publicada em 10 de abril. Sobre a origem do vírus, o governo Bolsonaro chegou a dizer que era fruto de um "plano comunista".

"Fiz o jejum para Deus"

Na Páscoa, por exemplo, o presidente contou com a adesão de líderes de grandes denominações como Silas Malafaia, Edir Macedo e Valdemiro Santiago, ao conclamar um jejum nacional contra a pandemia, na Páscoa.

Prática religiosa comum entre os pentecostais como Laurelândia e Clara, o jejum é instrumento para o fortalecimento de sua fé na luta contra o mal travada cotidianamente pelos pentecostais.

templo de salomão - André Lucas/UOL - André Lucas/UOL
Templo de Salomão, em São Paulo, cancela cultos, mas mantém portas abertas
Imagem: André Lucas/UOL

Essa luta cotidiana é o que os religiosos chamam de batalha espiritual. Por essa teologia, o mundo estaria em uma constante luta invisível entre representantes do bem, os anjos, e entre representantes do mal, os demônios.

Nessa racionalidade, Deus, onisciente, permitiria que, por vezes, o mal afligisse os humanos para testar a fé. É por essa razão, por acreditar na batalha espiritual, que Laurelândia e Carla interpretam a pandemia de coronavírus como fruto da "vontade de Deus".

Laurelândia fez o jejum, mas ressalva: "Eu jejuei e orei, mas foi pelo Brasil, não pelo presidente. Acho que falta para ele sinceridade". Se com o jejum a intenção de Bolsonaro era se colocar aliado dos pentecostais na batalha espiritual, pelo menos para Maria, o intuito falhou.

No caso de Carla e Laurelândia, muitas dessas fissuras ao apoio a Bolsonaro se relacionam com o modo como experienciam a fé. Atuando como mediadoras espirituais da família, entendem que suas orações, mesmo longe dos templos, são importantes na batalha contra a doença.

"A Bíblia diz que o povo tem que chamar o nome de Deus para sarar nossa terra. Ninguém sabe direito a origem desse vírus. Até hoje o homem não encontrou um remédio, uma vacina. Então, temos que colocar todos os dias os joelhos no chão e clamar ao Senhor. Temos que nos arrepender para Deus ouvir e sarar a nossa terra e a nossa família", pondera Laurelândia.

"O presidente, desde as eleições, se valeu de pautas que versaram sobre temas caros aos evangélicos, que são, em maioria, conservadores", explica o historiador e doutor em teologia, Fábio Py.

Origem divina, decisões mundanas

O pastor batista Kenner Terra reconhece que o posicionamento das duas religiosas destoa das principais lideranças evangélicas do país. "O presidente conta com o apoio da grade maioria dos pastores", diz ele.

Terra destaca, porém, que a crença na origem divina do coronavírus se associa ao sistema teológico dos pentecostais. "Há uma grande afinidade com o Antigo Testamento, com um Deus que pune, mas ao mesmo tempo cura", explica.

As duas personagens dessa reportagem compreendem que, mesmo citando a origem espiritual da Covid-19, a vida do povo está nas decisões de autoridades humanas e mundanas.