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"Luta de LGBT em favelas ainda é para continuarmos vivos", diz ativista gay

Elvis Justino, no centro da foto, à frente de integrantes da família Stronger - Divulgação
Elvis Justino, no centro da foto, à frente de integrantes da família Stronger Imagem: Divulgação

Carlos Minuano

Colaboração para Universa

25/03/2020 04h00Atualizada em 25/03/2020 10h52

Enquanto parte da comunidade LGBT celebra conquistas, em parte das favelas e periferias do país a realidade é outra, bem diferente. "A luta aqui é para continuar vivo", afirma Elvis Justino, 33 que se autodefine ativista, gay e favelado. Há 15 anos ele é militante da causa LGBT em regiões distantes do centro e de bairros nobres de São Paulo, lugares marcados por exclusão e homofobia.

O ativista mora em uma favela chamada Buraco do Sapo, atrás do shopping Interlagos, na zona sul da capital paulista. "É uma vida complicada e precária", declara. Segundo ele, a maioria vive em casas muito pequenas, aglomeradas, a maior parte sem esgoto. Falta também segurança, lazer e cultura. "Não tem uma biblioteca nessa região onde eu moro."

Sair de casa para ir ao centro, por exemplo, significa enfrentar mais um problema: a carência no serviço de transporte público. "É horríve", parece que a cada ano fica pior, cortam mais linhas, reduzem número de ônibus."

E a pessoa LGBT, além de todos os problemas decorrentes da pobreza extrema e da falta de infraestrutura, ainda precisa encarar em seu cotidiano o preconceito que em regiões periféricas e favelas, devido à falta de segurança e de informação, ainda reverbera um discurso obsoleto. De ofensas a pedradas, Justino garante que já viu todos os tipos de agressão e violência contra homossexuais nessas regiões.

A principal reclamação é justamente a violência, que proíbe a pessoa LGBT de poder viver sua própria sexualidade. "Enquanto em bairros nobres da cidade é possível para um casal gay passear de mãos dadas, ir a um bar tomar uma cerveja, aqui não posso receber um amigo de outra região com segurança, tenho que trazer, depois acompanhá-lo quando for embora, ou ele pode ser xingado, ameaçado, espancado."

"Ser LGBT na periferia é andar na rua e a qualquer momento tomar uma paulada na cabeça, somos impedidos de usufruir do direito de ir e vir sem ser perturbado, as pessoas se sentem no direito de se incomodarem com seu corpo, com seu jeito de falar, e de xingar, bater", ressalta Justino.

Elcio Justino - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Elcio Justino, que se autodefine ativista, gay e favelado
Imagem: Arquivo Pessoal

Ele relembra o caso da travesti Laura Vermont, morta aos 18 anos em 2015 com socos e pauladas em São Miguel Paulista, zona leste de São Paulo. "Casos semelhantes continuam ocorrendo", ressalta.

Outra questão enfrentada pela comunidade LGBT nas periferias é a quantidade cada vez maior de igrejas, que, segundo relatos de moradores, criminaliza a homossexualidade e aumenta a pressão sobre moradores. "Aceitam tudo, beber, cheirar, fumar, ir a baile funk, mas não pode ser gay", reclama Justino.

A indignação em meio a tantas adversidades levou Justino ao ativismo gay, segundo ele, um caminho para lutar por melhores condições de vida. Há uma década ele faz parte de um coletivo chamado Família Stronger, rede virtual criada há 15 anos que busca conectar periferias e proteger seus integrantes, além de promover atividades variadas em regiões distantes dos grandes centros.

Uma das principais ações promovidas pelo coletivo é a organização de seis paradas gay em regiões periféricas de São Paulo: Cidade Tiradentes, Capão Redondo, Itaim Paulista, Carapicuíba, Jardinópolis e Salto - suspensas no momento por causa da pandemia do novo coronavírus. Outra atuação importante é no fortalecimento da autoestima da juventude LGBT.

Expulso de casa, jovem gay foi morar em favela

Para a população LGBT que vive em periferias e favelas, muitas vezes nem a própria casa é um local seguro. O preconceito da família pode tornar o ambiente um espaço torturante. Muitos relatam carregar um sentimento de culpa por não ser hétero e de ter a sensação constante de que não bem-vindos onde moram. Outros acabam na rua, expulsos por seus familiares. Foi assim com Everton Arruda, 23, que hoje vive com o namorado em uma favela no Jardim Jaqueline, zona oeste da capital paulista.

Everton Arruda - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Everton Arruda
Imagem: Arquivo Pessoal

Aos 16 anos, os pais, religiosos, o expulsaram de casa quando descobriram sua homossexualidade porque ele não seria uma boa influência para os irmãos. "Fui agredido pelo meu pai, morei na rua e tive que me prostituir por um tempo."

Essa foi apenas uma das vezes que foi expulso da casa em que morava, no Itaim Paulista. "Voltou a ocorrer umas quatro vezes até o momento em que decidi não voltar mais." Sobre a vida nas periferias, ele afirma que a regra é a da sobrevivência. "Vivemos um dia de cada vez."

Cenas de série sobre gays na periferia, do Canal Brasil - Divulgação - Divulgação
Cenas de série sobre gays na periferia, do Canal Brasil
Imagem: Divulgação

Série retrata favelas pelo país

Em muitas outras favelas e periferias espalhadas pelo país, mudam nomes e endereços, mas a realidade de contrastes, exclusão, preconceito e violência permanece igual. É o que mostra a série "Favela Gay - Periferias LGBTQI+", que estreia hoje no Canal Brasil, às 19h30. Dez episódios visitam comunidades fora dos grandes centros em São Paulo, Brasília, Rio Grande do Sul, Bahia e Pará.

O que o cotidiano das comunidades em todo o país revela é o enfrentamento diário e massacrante de uma sobreposição de preconceitos, que vai da orientação sexual à classe social.

A série dirigida por Rodrigo Felha traz relatos de pessoas em regiões tão distantes quantos distintas, mas todas com traços semelhantes como, por exemplo, a perseguição em algum momento da vida. Uma das histórias do filme é a da trans Isabella Santorinne, 29, de Guamá, em Belém. De família religiosa, ela recorda do difícil início de sua transição entre a infância e a adolescência, e de como começou a sentir rejeitada por todos.

Ainda se vestindo com roupas masculinas, mas já com os cabelos compridos, e coroinha na igreja, ela foi convidada a encenar Jesus em uma apresentação teatral. "Só se for um Jesus com peito, porque eu tomo hormônios", respondeu Santorinne, segundo conta. "Ou posso interpretar Maria", sugeriu em seguida. Foi o fim da carreira como coroinha, e o começo de uma batalha para abandonar a "casca masculina" que a impedia de viver plenamente.

Por todos os lugares onde filmou, o diretor Rodrigo Felha relata ter encontrado o mesmo combo: falta de estrutura e sensibilidade por parte da sociedade, governo e família para entenderem e discutirem sobre inclusão, oportunidades e respeito às diferenças. Entretanto, ele destaca que o relato mais chocante com o qual se deparou é exatamente o que não ele menos esperava.

É o de Paulo Colucci, 30, gay também de Belém, que contraria toda a normatividade vigente na sociedade. "A mãe dele é extremamente cristã, mas coloca o filho em primeiro plano, deposita todo amor e orgulho nele, assim como o marido dela, que é policial e também transbordando o mesmo afeto pelo jovem", conta o diretor.

Para o diretor, histórias como essas são fundamentais para uma reflexão de quanto estamos impregnados de arrogância e preconceito. "Precisamos seguir o exemplo de famílias assim, que prezam pelo amor e respeito mútuo".

A série é uma continuação do documentário "Favela Gay", de 2014, que mostra o cotidiano de homossexuais em favelas do Rio. A série "Favela Gay - Periferias LGBTQI+" será exibido às quartas-feiras, 19h30 com reprises às segundas, 12h30, e terças, 7h30.