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Mulheres protagonizam um mundo em evolução


"Eu gritava, chorava, rezava", diz mulher arrastada por enxurrada em MG

Vítimas de chuvas em MG Gláucia - Arquivo Pessoal
Vítimas de chuvas em MG Gláucia Imagem: Arquivo Pessoal

Bárbara Caldeira

Colaboração para Universa

04/02/2020 04h00

"É uma água podre, imunda. Uma cena de terror. Entrei em choque, não me lembro de tudo que aconteceu. Minha casa parecia um rio." A dona de casa Gláucia Resende Maia Silva, de 56 anos, moradora do bairro Amazonas, em Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, viu seu lar ser invadido pelas águas das chuvas que assolam não só sua cidade, mas todo o estado de Minas Gerais nos últimos dias.

Além de perder quase tudo o que tinha, Gláucia foi arrastada de dentro de sua garagem pela correnteza que se formou e ficou ilhada na marquise da casa da sogra, no lote ao lado, por 40 minutos, enquanto a tempestade caía. "Eu gritava, chorava, rezava. Foi um momento de pânico."

A casa de Gláucia foi inundada no dia 19 de janeiro. "Na hora do almoço começou uma chuva muito forte. Quando fomos colocar uma proteção de borracha na garagem para conter a água, o portão estourou", relembra. Os carros do marido, Márcio Luiz da Silva, 55 anos, que é taxista, e o do filho, Álvaro Resende Silva, 23, começaram a bater um no outro com a força da chuva.

"Falei para o meu filho pegar nosso cachorro e entrar em casa. Ele começou a gritar sem parar. É tudo muito assustador. A minha prioridade era que ele ficasse bem. Ver meu filho desesperado me doía muito."

Risco de pegar doenças

A casa de Gláucia com  muro caído em MG - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
A casa de Gláudia: muro caído e muita reconstrução pela frente
Imagem: Arquivo Pessoal

A pressão das águas fez com que o muro que separa os dois lotes arrebentasse. Gláucia foi arrastada pela correnteza e ficou ilhada na marquise da sogra. Ela lembra que pessoas que passavam de carro pela BR 381 conseguiam vê-la e gritavam perguntando se precisavam de ajuda do outro lado, mas o barulho da chuva era tão alto que não conseguiam ouvi-la.

"Meu filho cortou a perna no vidro da porta e ficou lá, naquela água suja. Teve que levar pontos. Todos nós tomamos vacina depois no posto para não pegar doenças", diz. Tétano e Hepatite A são as maiores preocupações nesse caso, assim como a leptospirose.

Gláucia conseguiu salvar o guarda-roupa do quarto de casal, a cama e o sofá, mas a mesa da copa, o rack da TV, as cadeiras e outros itens tiveram que ser descartados. Grande parte das roupas também ficou inutilizável.

O táxi do marido, que garante a renda da família, assim como o carro do filho, tinham seguro. Foi constatada perda total, mas vai demorar até que todo o processo seja concluído e Márcio possa voltar a rodar com a sua placa. "Impacta muito nossa vida, porque as contas não param de chegar. Por enquanto estamos dedicados à limpeza, mas em breve ele vai voltar a trabalhar com uma placa que não é dele, então tem diária para pagar", explica.

Apreensão quando a chuva recomeça

A família está ficando na casa da mãe de Gláucia, porque o odor deixa a sua inabitável. Ela conta que vai ate seu imóvel para abrir as janelas e portas para arejar o local, mas que sempre que entra lá as lembranças ruins voltam. "Outro dia eu estava calçando uma sandália, pisei numa poça de água e aquilo me fez sentir que todo o pesadelo aconteceria de novo. Fiquei muito nervosa."

Quando o filho está no estágio e a chuva está forte, liga para a mãe sem parar querendo saber se está tudo bem. Os amigos da empresa onde ele estagia — a Fiat, em Betim, cidade próxima — descobriram o que aconteceu e se mobilizaram para ajudar. "A gente aprende que a solidariedade fortalece. Com as doações, mas principalmente com a atenção. Às vezes, o que a gente realmente precisa é de um abraço."

"Medo de entrar em casa e tudo desabar"

Ilma, uma da vítimas das chuvas em MG - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Ilma e sua família perderam tudo: só ficou a roupa do corpo
Imagem: Arquivo Pessoal

"Eu evito até ir à janela pra não ter que ver a minha casa destruída, as minhas plantinhas". Ilma Alves de Souza, de 55 anos, também foi uma das vítimas das chuvas torrenciais das últimas semanas. Ao longo dos 20 anos em que mora no lote da família do marido, na Avenida Tereza Cristina, uma das mais castigadas de Belo Horizonte, Ilma viveu seis enchentes — quatro delas apenas em janeiro de 2020.

Ilma nunca pintou a maior parte das paredes da casa durante essas duas décadas. A superfície é um museu involuntário de memórias tristes, com as marcas que registram a altura das águas em todas as vezes em que houve alagamento. As mais recentes batem 2m de altura e foram inscritas no dia 24 de janeiro, a sexta-feira que não vai sair tão cedo da memória dos mineiros. Também houve invasões de água de 1,60m, no dia 19 do mês passado, e 1,80m, no dia 28 último.

"Lavo minhas vasilhas, tento limpar o que sobrou, e vem outra chuva que deixa tudo sujo de lama outra vez", conta. Há dias Ilma tem ficado na casa da sogra porque a sua não é mais segura. A Defesa Civil disse, no dia 19, um domingo, que voltaria para fazer uma avaliação. Até então não voltou. O laudo é essencial para que a família consiga, por exemplo, fazer segunda via de documentos gratuitamente. "Estamos com medo de entrar em casa e tudo desabar, porque duas paredes já caíram."

"Vivo tranquila só oito meses do ano"

"A gente vê tudo o que batalhou para conquistar sendo destruído. Eu vivo tranquila só oito meses do ano. Quando chega a época das chuvas, o coração fica apertado. A gente não pode viver desse jeito", desabafa Ilma. Em 2008, em uma enchente no mesmo local, ela pegou uma infecção na perna da qual nunca se recuperou. "Eu estava com uma úlcera varicosa e a água suja me trouxe uma bactéria que até hoje não descobriram qual é. Tenho uma infecção que vai e volta, me deixou com inchaço, dificuldades de andar e com vergonha de vestir short, porque a aparência é muito feia."

Cratera aberta naavenida Teresa Crisina - Guilherme Fernandes - Guilherme Fernandes
Cratera na Av. Tereza Cristina, a mesma em que mora Ilma, causada pelas chuvas
Imagem: Guilherme Fernandes

No domingo (19), ela estava decidida a reabrir o bar que fica no lote da sua casa, especialmente porque a renda da família, com o estabelecimento fechado por causa da chuva mais recente, estava comprometida. É do bar e das marmitas que Ilma faz que a família sobrevive com cerca de um salário mínimo. Tanto o marido, Guilherme Batista Neto, de 65 anos, quanto seu filho, Spencer Rodrigues, 18, trabalham com ela.

Caprichosa, fez um prato muito apreciado em Minas para servir aos fregueses: canjiquinha com suã. A chuva veio novamente, as panelas começaram a boiar e os clientes tiveram de ir embora. A água também levou consigo um dinheiro que a família tinha guardado, R$ 380. Na casa, destruiu todos os móveis e eletrodomésticos, assim como outros objetos. "Ficamos com a roupa do corpo. Agora que recebemos doações de peças de roupas e mantimentos", diz Ilma.

No último sábado (1 de fevereiro), Ilma foi parar na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) próxima de sua casa com febre e dores. Está tratando mais uma infecção com antibióticos. "E o estado emocional não ajuda, o corpo da gente piora", relata. Na avenida do lote em que Ilma mora e trabalha, uma cratera com mais de 7 metros de profundidade mostra a violência da água que transborda — mas, especialmente, o descaso do poder público.

"A gente faz um apelo para as autoridades, porque não podemos viver desse jeito. Tem gente que fala para abandonarmos o lote, porque é perigoso, corre risco de o muro desabar, de ter mais alagamento. Mas não temos pra onde ir." Tantas chuvas afetando os mesmos locais por tantos anos escancaram a falta de planejamento na construção de Belo Horizonte — cidade de rios invisíveis, escondidos pelo concreto mas que precisam seguir seu fluxo — e a falta de amparo e políticas públicas voltadas para pessoas que se encontram em áreas vulneráveis.

O mês de fevereiro chegou mas as notícias não são animadoras: há alertas de tempestades intensas, ventos fortes e chuvas de granizo. Até agora, Minas Gerais contabiliza mais de 45 mil pessoas desalojadas, mais de 8 mil desabrigadas, 68 feridas e 57 mortas — morreu neste domingo (2) Miriam Azevedo Damasceno, de 38 anos, atingida pelos destroços de um muro na madrugada do dia 24, em Caratinga, no Vale do Aço.

Mobilização para doações

"Toda essa situação evidencia a falta de políticas públicas e investimentos destinados a resolver os problemas vividos pelos trabalhadores nas periferias das grandes cidades", diz Indira Xavier, coordenadora da Casa de Referência da Mulher Tina Martins, em Belo Horizonte, que funciona como ponto de coleta de doações para moradores da Ocupação Vila Esperança, Zona Oeste da cidade. Em termos populares, a corda sempre arrebenta do lado mais fraco.

"As enchentes ocorrem todos os anos nesses locais e nada é feito, nem sequer para minimizar os impactos", relata. Muitas famílias afetadas são, inclusive, formadas por uma mãe solo e seus filhos, deixando as mulheres em situação de desamparo e desespero. "A gente disponibilizou a casa para receber mulheres atingidas pelas chuvas", diz Indira. A instituição usualmente acolhe e abriga mulheres vítimas de violência, além de oferecer apoio jurídico e psicológico.

Outros pontos de coleta de doações principalmente de alimentos não-perecíveis, água mineral, colchões, roupas de cama e materiais de limpeza e de higiene pessoal na capital mineira são a Cruz Vermelha, Servas e unidades do Corpo de Bombeiros.