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Mãe consegue na Justiça reduzir jornada para cuidar de filho autista

Daniel Leite

Colaboração para Universa

06/10/2019 04h00Atualizada em 22/03/2020 16h58

Uma funcionária pública de Santa Catarina conseguiu no mês passado na Justiça o direito a reduzir sua jornada de trabalho, sem diminuição do salário, para cuidar do filho autista. Em vez de 40 horas por semana, a professora Jaqueline Lopes passará a cumprir 20. No restante do tempo, ela poderá se dedicar à criança.

A base para a decisão judicial foi um decreto estadual de 1987 no qual consta o termo "excepcional", comum na época, mas atualmente em desuso. A conquista só veio após ela entrar na justiça. Administrativamente, apesar de a legislação garantir, ela recebeu resposta negativa do estado.

Universa conversou com três mães que, atualmente, estão em situações distintas na luta para poderem se dedicar mais aos filhos autistas em meio à rotina de trabalho de servidoras públicas de um município, um estado e outra da União -só a última está sob a proteção dessa lei.

No próximo dia 25, o filho da catarinense Jaqueline Lopes completa 13 anos.

Antes de ser efetivada como funcionária pública estadual, ela precisou se afastar por quatro anos do trabalho porque, devido ao autismo, houve um atraso cada vez mais agudo no desenvolvimento da garota, que ela prefere não revelar o nome e nem a foto. "Não dava tempo nem pra gente conversar. Parei pra incentivar a fala, ajudar. Era o que ela precisava".

Depois, concursada, tentou administrativamente a jornada reduzida de serviço, mas o estado negou com a alegação de a filha não precisar dos cuidados da mãe por mais tempo.

Enquanto isso, devido ao trabalho, e sem ter com quem contar, Jaqueline chegava para buscar a criança nas atividades da casa de cultura, onde ficava durante boa parte da semana, meia hora depois das outras mães.

Acompanhar a criança de acordo com indicações médicas era cada vez mais difícil, e ela decidiu entrar na Justiça.

Laudos comprovaram a necessidade de estar mais tempo perto da filha e, por meio de uma liminar, ela passou a trabalhar 20, em vez de 40 horas semanais, sem prejuízo do salário. O julgamento, feito há poucas semanas, confirmou a decisão.

A professora, enfim, pode acompanhar com mais tranquilidade, amparada na lei, a filha na psicóloga, neurologista, no clube de xadrez e em outras atividades necessárias para o desenvolvimento da criança. "A gente teve um ganho na qualidade de vida. Passei a ter mais tempo para cuidar dela."

Chefe colabora, mas Ieda quer o ter o direito garantido

No ano passado, o filho da professora da rede municipal de ensino de Uberaba (MG) foi diagnosticado com autismo. Servidora há 16 anos, ela agradece aos chefes por entenderem a situação e, assim, conseguir flexibilizar, de vez em quando, a carga horária.

Para dar conta de cuidar de Vinícius, autista moderado, o dia é corrido. Mesmo com todos os esforços, ele deixa de fazer atividades necessárias a quem tem a deficiência, como as de psicomotricidade, para melhora de movimentos, inteligência e até afeto. "Fica apertado porque saio de casa de manhã, levo na terapia, depois uma van que leva pra escola. Tem terapia que ele não faz, como a de psicomotricidade, porque eu não posso ficar mais tempo ausente do trabalho".

Por isso, mesmo sem muita esperança, Ieda entrou com processo administrativo há duas semanas na prefeitura. "Nem um pouco de esperança porque ou não tem a legislação que prevê ou, quando tem, eles indeferem. E muitas mães nem tentam com medo de perseguição no emprego".

Ausência de lei não justifica a negação do direito, diz advogada

Mesmo não havendo lei específica, a mãe tem direito à jornada especial, garante Michelly Siqueira, advogada especialista em Direito da Pessoa com Deficiência e Idosos. "É importante lembrar que a ausência de legislação específica não é justificativa para negar o pedido. O que deve ser observado é a Lei Brasileira de Inclusão, os princípios constitucionais e a Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, que são claros com relação a esses direitos. A lei Federal é usada por analogia também no caso de ausência de legislação específica".

Em Belo Horizonte, uma mãe que prefere o anonimato também optou por nem procurar seus direitos, de tão incrédula. O caso dela seria na esfera federal, pois é concursada da União. "Nunca procurei a justiça. Só sondei. Como vi que seria negado, não solicitei".

A filha tem autismo grave. Para a servidora pública, ter mais tempo com a menina seria poder cuidar das duas ao mesmo tempo, já que o nível de atenção exigido pelos autistas costuma ser alto, o que desgasta a mãe. "Uma pessoa que possa fazer até uma ginástica ou até mesmo dormir melhor, terá mais sanidade mental para lidar com uma pessoa com o transtorno", ela diz.

Na avaliação da advogada especialista, a ausência de conhecimento da lei faz os gestores públicos não a aplicarem e utilizarem diversas justificativas. Por isso ela defende maior conscientização. "O que é necessário é uma fiscalização maior das leis, ampliar as informações, para que mais pessoas tenham conhecimento de seus direitos, para assim exigir o seu cumprimento."

O que diz a lei

A concessão de jornada especial sem redução de salário é um entendimento adotado por juízes a partir de uma combinação de leis e convenção. Além disso, há jurisprudência em estados como São Paulo, Santa Catarina, Espírito Santo.

Os magistrados se apoiam no Estatuto da Pessoa com Deficiência, na Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência e na lei de 13.370, de 2016, que altera outra, a lei 8.112, de 1990, estendendo o direito a horário especial ao servidor com filho com deficiência, sem a necessidade de compensação de horas trabalhadas.

Em Santa Catarina, onde mora Jaqueline, há decreto estabelecendo que a jornada máxima para quem tem filho com deficiência é de 20 horas semanais. Nos casos de municípios, a Justiça tem decidido que a ausência de legislação local não é motivo suficiente para negar o pedido e se ampara em outras leis para decidir as questões.