Racismo, ameaça e gordofobia: o que a violência online fez a estas mulheres
Humilhação, machismo, ameaças, publicação de mensagens e imagens íntimas sem autorização, racismo, gordofobia e intolerância. Em todo o mundo, 73% das mulheres que estão conectadas à internet já foram expostas a algum tipo de violência online. O dado é da Comissão de Banda Larga da ONU, divulgado em 2015.
A estudante brasileira Jéssica Ipólito, 26 anos, é parte da estatística. Em janeiro de 2016, ela postou uma selfie seminua no Facebook junto com um texto, no qual falava da sua autoestima como mulher negra, gorda e lésbica. Em menos de 24 horas, o post tinha quatro mil comentários. Nem todos eram flores.
Homens, na sua grande maioria, escreveram textos carregados de racismo e gordofobia: “Uma macaca dessa tem que morrer!”,“Por que não vai emagrecer?, “Aceita: GORDA NÃO É GOSTOSA!”, “Tão gorda que a Terra gira em torno de você [sic]”. Jéssica estava diante de um ataque “em bando”, de sujeitos que participam de “fóruns de direita”, identificados pela própria estudante.
Os comentaristas ainda denunciaram o perfil de Jéssica, o que fez com ela tivesse sua conta desativada temporariamente. “A política de privacidade do Facebook permite que ataques como esse sejam realizados e que as vítimas desses criminosos ainda sejam punidas. É a lógica do 'fez por merecer'”, afirma. No Instagram, seu perfil também foi desativado, mas esse ela não conseguiu recuperar, teve que criar outro.
“Não posto mais foto minha na internet. Os ataques me cansaram, mexeram com o meu psicológico. Foram a gota d'água pra mim. Não é pelo fato de ter minhas contas deletadas, é pelo fato de ter minha vida violentada.”
Quando a violência atinge a vida prática
Maria Rita, 37, é desenvolvedora web e está na internet desde 1997, sempre escrevendo sobre suas visões de mundo. Um dos seus blogs mais conhecidos é o True Love - Cultura Lésbica e Bissexual, onde fala de amor, corpo e política. Coisas que para ela são indissociáveis.
Por causa de seus textos e posicionamentos, ela foi atacada incontáveis vezes. “Era machismo, racismo e transfobia aos montes. Tudo grave e forte, nada ali era brincadeira”, conta. Maria Rita é uma mulher negra que se relaciona com um homem trans.
Veja também
- Para a Câmara, PF poderá investigar mensagens de ódio contra mulheres na rede
- Juiz questiona reputação de Fernanda Young e reduz indenização no processo
Em 2014, ela começou a sentir medo. Ameaças por telefone, cartas pelo correio e e-mails com a foto de seu filho brincando no portão de casa foram o ápice dos ataques. Maria Rita se viu obrigada a mudar de endereço. Já são três casas diferentes desde aquele ano. A violência que começou online trouxe consequências para a vida prática dela. Imagine alguém temer a ponto de mudar de telefone, criar outros perfis nas redes sociais e precisar trocar de endereço?
“Eu adoraria poder dizer que a lei brasileira me protegeu, que consegui me sentir segura depois de tantas ameaças, mas não foi o que aconteceu”, diz, decepcionada. A verdade é que Maria Rita foi atrás de defender a si mesma. “Eu não tinha dinheiro para um advogado. Os ataques eram inúmeros e vinham de todo tipo de destinatário. Também não tinha condições de contratar alguém para investigar. Fiz o que pude: mudei de casa, troquei tanto de telefone e email que perdi as contas, e me afastei da internet. Hoje só assino textos com pseudônimo. Ando ainda pensando meu lugar na internet. Se não é para construir uma web positiva, prefiro não fazer parte.”
Mas a lei protege essas mulheres?
“A lei brasileira atual se aplica aos crimes dados na internet”, explica a advogada Isabela Del Monde, do escritório Tini e Guimarães Advogados, que trabalhou na defesa do caso da escritora Fernanda Young, um exemplo de agressão contra mulher na internet.
Em 2015, Fernanda foi agredida em seu Instagram por um perfil falso. “Dizia que eu era uma vadia lésbica, que tinha entrado ali para bater uma punheta e saiu como entrou, com o pau mole”, contou em entrevista ao UOL. Em resposta à agressão, ela abriu um processo judicial para descobrir a identidade do autor dos comentários. Deu trabalho, custou dinheiro, mas ela conseguiu ganhar a ação.
Diferentemente de Fernanda, Jéssica e Maria Rita não procuraram defesa na Justiça. Poderiam, mas preferiram não fazer. Isabela entende a escolha das duas: “Uma vítima de violência sofre quando vai procurar ajuda. Encara perguntas do delegado e olhares enviesados de qualquer servidor público. Além do mais, encontrar o agressor custa caro, demora e é uma tarefa cheia de entraves e burocracia. Depois, crimes de injúria e difamação são considerados de baixo potencial ofensivo pela legislação. A punição é branda, no máximo prestação de serviços comunitários. Muitas vezes, o despende financeiro e o emocional não compensa recorrer à Justiça.”
Isabela frisa: “Ao invés de criticarmos essas mulheres por não denunciarem, precisamos compreender por que as mulheres não foram atrás do aparato público”.
Se não com a lei, como as mulheres podem se proteger?
Um trabalho conjunto entre a ONG CFEMEA, a Universidade Livre Feminista, o hackerspace Marialab e o site Blogueiras Negras rendeu a Guia Prática de Estratégias e Táticas para a Segurança Digital Feminista. Trata-se de um documento bastante completo para ajudar mulheres a se protegerem da violência digital. Há informações detalhadas sobre prevenção de ataques e proteção de dados. Quase tudo de forma que a mulher possa agir sozinha, configurando ferramentas em redes, por exemplo.
“O crescente número de mulheres, especialmente militantes feministas, que sofrem abusos e violências na internet foi nossa motivação. A verdade é que o espaço virtual tem se mostrado um lugar onde as mulheres lidam com a desproteção como uma extensão de suas vidas. As agressões online são um reflexo da vida offline”, diz Larissa Santiago, do Blogueiras Negras.
Denuncie!
Apesar de não termos ainda uma lei abrangente de internet e crimes virtuais no Brasil, as leis vigentes para os crimes de honra valem para qualquer site que preste serviço no Brasil, sendo assim responsável por responder legalmente a sua sede administrativa. Ou seja: crime continua sendo crime, não muda nada se é na internet ou não.
"É importante que cobremos das plataformas de redes sociais, para que elas se engajem na proteção. E é importante que, mesmo dolorosos, os B.O.s sejam feitos. Os crimes da internet não podem passar por menores. Mensagens de ódio não são liberdade de expressão, são violências das mais graves”, diz Isabela.
Denuncie nas plataformas*
- Para denúncia no Youtube;
- para denúncia no Instagram;
- para denúncia no Twitter;
- para denúncia “na internet” através do Safernet;
- para denúncia dentro do Facebook.
*A lista faz parte da Guia Prática de Estratégias e Táticas para a Segurança Digital Feminista.
PF poderá investigar mensagens de ódio contra mulheres na rede
Se depender da Câmara dos Deputados, a Polícia Federal poderá investigar mensagens de ódio contra mulheres na internet. O projeto de lei 4616/16 foi apresentado pela deputada federal Luizianne Lins (PT-CE), que usou como base ataques sofridos por Lola Aronovich, professora da UFC (Universidade Federal do Ceará), que teve seu blog pessoal invadido e recebeu ataques pessoais nas redes sociais em 2015. Para entrar em vigor, o projeto ainda precisa ser aprovado no Senado Federal.
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