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Por que 56% das crianças querem ser um celular? Não parece, mas é sério

Celular pode prejudicar a relação entre pais e filhos - Getty Images
Celular pode prejudicar a relação entre pais e filhos Imagem: Getty Images

Daniela Carasco

do UOL, em São Paulo

28/11/2017 04h00

“Sai desse celular!” Essa frase não sai da boca de pais e mães, mas muitos deles mereciam escutá-la, também. Apesar de as atenções estarem mais voltadas aos impactos negativos do uso da tecnologia pelas crianças, pouco se fala sobre o assunto quando se trata de adultos.

Luci Pfeiffer, pediatra, psicanalista e coordenadora do Programa DEDICA, trata da defesa dos direitos de crianças e adolescentes vítimas de violência grave e gravíssima. Ela diz que é preciso que os pais se debrucem cada vez mais sobre os próprios hábitos e percebam o quanto o convívio familiar tem sido negligenciado pelo vício na tecnologia.

Uma pesquisa global realizada pela AVG Technologies, que viralizou recentemente, mostrou o quanto os filhos estão invisíveis dentro de casa. Cerca de 83% das crianças entrevistadas disseram que se sentem trocadas pelo celular, 56% gostariam de ser um celular e afirmaram que confiscariam os aparelhos dos pais se pudessem.

Para o estudo foram ouvidos 316 brasileiros de um total de 6.117 entrevistados de países como EUA, Austrália, Canadá, República Tcheca, França, Alemanha, Nova Zelândia e Reino Unido.

“Vivemos uma realidade de violência virtual, que se dá por meio de abandono dos pais”, afirma Luci. “A negligência, que é a falta do cuidar, é uma das piores formas de violência. Ela é velada, não deixa marcas evidentes, mas destrói a estruturação de personalidade de uma criança. Por isso é grave.”

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O impacto na formação de crianças e adolescentes

Segundo a especialista, até os seis anos, crianças constroem todos os valores éticos e morais, que são aprendidos por espelhamento e estímulo dos adultos. “Portanto, se o pai e a mãe não largam o celular em casa, é esse comportamento que estarão ensinando”, diz. “Isso tomará o tempo de atividades que valorizam o contato, gerando problemas como isolamento e vício.”

Luci critica ainda a maneira perversa como os desenhos atuais têm segurado a atenção das crianças, como se fossem os próprios pais. Os olhos grandes dos personagens, por exemplo, estão lá porque os bebês procuram o tempo todo o olhar dos adultos, as risadas recorrentes é o sinal de aprovação que eles sempre buscam nos responsáveis pela sua criação, as frases repetidas é o método mais eficaz de fazê-los aprender a falar.

“O problema é que nenhuma tecnologia substitui abraço, carinho, sorriso e olhar de aprovação”, conta. “O que está acontecendo é uma grave terceirização do cuidar, que não tem afeto nem calor.” 

Como droga ou sexo

Antes, Luci lidava com um barulho imenso no consultório, por conta das crianças brincando>. Agora, quando vai à sala de espera, cada pai usa seu smartphone e a criança fica no tablet. Em casa, os adultos interrompem qualquer brincadeira para se ocupar das mensagens que chegam por WhatsApp, e o celular está presente até na hora das refeições

E quando o aparelho por acaso é esquecido em casa? A pessoa volta para buscá-lo imediatamente. “Isso se chama nomofobia, uma consequência grave da dependência de eletrônicos”, conta.

Luli Radfaher, professor de Comunicação Digital da Escola de Comunicação e Artes da USP e autor do livro “Enciclopédia da Nuvem”, compara o vício em tecnologia ao de drogas. “Toda vez que o indivíduo atualiza as redes sociais atrás de novidades, por exemplo, ele recebe uma descarga de endorfina do cérebro e fica feliz. É o mesmo prazer depois de um orgasmo ou do uso de cocaína.”

Essa dependência é agravada pelo aumento da expectativa sobre a carga social implicada nessas ferramentas. “Acredita-se sempre que o próximo post receberá mais likes. Isso é um círculo vicioso, que mexe com a autoestima.”

Como agir no dia a dia?

Na prática, as associações de pediatria nacionais e internacionais recomendam mudanças por parte de todos os membros da família.

  • Aos filhos: até os dois anos, é aconselhado que a criança não tenha contato com nenhuma tela. Esse é o momento de aprender com o toque, o paladar e troca interpessoal. Dos 3 aos 6 anos, a recomendação de uso do aparelho eletrônico é de, no máximo, uma hora por dia. Dos seis em diante, os filhos devem usá-los até duas horas por dia.
     
  • Aos pais: se tiver na companhia dos filhos, deixe o telefone de lado, preste atenção no que ele tem a dizer e brinque o máximo possível. Além disso, dê preferência à comunicação oral. Levar trabalho para casa também não deve virar rotina. É preciso aproveitar as trocas e a vida em família.

Reproduza no mundo real as ações virtuais

Uma campanha batizada de “Conecte-se ao que importa”, criada pela Associação dos Amigos do Hospital das Clínicas do Paraná, sugere com simples conselhos que atitudes tão comuns ao ambiente virtual sejam transferidas ao dia a dia. São elas:

  • Tem gente solicitando a sua amizade dentro de casa
  • Quando você larga o celular, é o seu filho que vibra
  • Você não vai vê-lo crescer se continuar olhando para baixo
  • Seu filho passa muito tempo na TV? Pois é, crianças tendem a imitar os pais
  • A conversa em casa pode passar dos 140 caracteres
  • Ele só quer a sua curtida
  • Curta a vida dele como você curte a dos outros