Como se abrir para o amor depois de um relacionamento abusivo?
Três em cada cinco mulheres são vítimas de um relacionamento abusivo ao longo da vida, segundo levantamento da ONU Mulheres. Em 2016, a Central de Atendimento à Mulher, o Ligue 180, recebeu mais de um milhão de denúncias em todo o país. Cerca de 65% dos casos de violência física, psicológica e sexual relatados foram praticados por companheiros.
Nas redes sociais, milhares de vítimas recorrem a grupos de apoio para desabafar e encontrar uma saída. “É possível superar uma relação violenta e se abrir novamente ao amor?”, questionam. Algumas que já passaram por isso garantem que sim, apesar de os relatos de superação ainda não serem numerosos.
Segundo Claudia Riecken, neurocientista, psicoterapeuta e autora do livro “SobreViver” (ed. Saraiva), “é possível ser resiliente em situações como essas e a relação saudável que se constrói depois é muito compensadora”. Procurar ajuda é fundamental!
“Fui humilhada pelo meu ex e, hoje, só quero ser feliz”
A modelo carioca Vanessa*, 26, faz parte do grupo das que conseguiram se reerguer. Ela conheceu Carlos* aos 17 anos. A relação durou quatro e foi marcada por uma série de humilhações. “Ele criticava minha aparência, tinha surtos de ciúmes, me afastou dos meus amigos, gritava comigo o tempo todo. Era um relacionamento baseado no controle, não no amor”, conta. “Mas só me dei conta disso depois de me separar.”
O sofrimento e a dependência emocional lhe renderam muitos quilos a menos na balança e uma autoestima completamente devastada. “Comecei a me achar feia e tive certeza de ninguém, além dele, se interessaria por mim. Me sentia culpada por toda a dor que estava enfrentando.” Até que um dia, em um evento a trabalho, Vanessa recebeu a investida de um rapaz desconhecido. “Cheguei em casa, me olhei no espelho e descobri uma mulher interessante naquele reflexo.”
A separação veio acompanhada de ameaças de morte e muita perseguição. “Com a ajuda de uma ONG de amparo a vítimas de violência, tomei coragem de registrar um Boletim de Ocorrência contra ele. Receber o amparo de quem viveu uma experiência parecida é muito valioso.” Vanessa se abriu ao pretendente. “Saí cheia de sequelas daquela relação abusiva e ele teve muita paciência em me doutrinar. Namoramos durante três anos e foi maravilhoso. Não digo que fui forte, apenas entendi que já tinha vivido o pior.”
“Dê uma segunda chance a você mesma”
A estudante Karen*, 21, foi vítima de uma relação abusiva na adolescência. O agressor? Seu primeiro namorado. Na primeira fase, o relacionamento durou três anos à base de muita mentira e abuso psicológico. “Ele estava sempre cercado de meninas e, toda vez que eu ameaçava terminar, dizia que ninguém seria capaz de me aguentar. Toda discussão era marcada por atitudes violentas que me deixaram diversos hematomas.”
O primeiro rompimento durou seis meses. “Ingênua e apaixonada, acreditei que ele poderia mudar. Depois de muita insistência, voltamos. Logo, vieram as brigas. Só me dei conta da violência quando ele me forçou a manter relações sexuais.” Desamparada, Karen foi tachada de louca e chata pelos amigos e familiares do ex. Viu o corpo e a mente reagir com crises de gastrite e ansiedade. Era hora de dar um basta definitivo.
“Ele chegou a invadir minha casa de madrugada. Por sorte, não me encontrou.” Depois de sete meses solteira, Karen se interessou por um colega de faculdade. A princípio, precisou superar uma série de traumas que envolviam desconfianças e inseguranças. Ela e Alex* estão juntos há sete meses, em um relacionamento de cartas abertas. “Contei tudo o que passei para que nada se repetisse. Não vou reviver os traumas do passado.” Aprendi que ninguém muda pelo outro e que os sintomas tóxicos de uma relação violenta aparecem logo no início.
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“Encontrar o amor próprio é importante para se libertar”
Ao contrário de Vanessa e Karen, a gaúcha Fernanda*, 45, ainda não se apaixonou novamente. Comemora, porém, a descoberta de um sentimento que ainda desconhecia: o amor-próprio. O casamento abusivo de quatro anos a afastou de si mesma.
“Meu ex era um narcisista perverso, mas descobri só depois de terminar, há dois anos. Vivi um jogo silencioso de agressões psicológicas, morais e financeiras. Fui traída, chamada de louca, abandonei meus interesses, me afundei num ciúme doentio e larguei tudo para trabalhar com ele”, conta. Fernanda trocou sua vida pela do ex-marido, que a deixou quando decidiu viver com a amante.
“Sem saber, cheguei a assinar um contrato abrindo mão da sociedade da nossa empresa, sem direito a nada. Para ambas as famílias, eu estava deixando pra trás um homem maravilhoso.” Sozinha, ela buscou a ajuda de um amigo psicólogo para identificar os abusos dos quais foi vítima e criou um grupo de apoio nas redes, onde se enxergou na dor de outras mulheres. O único arrependimento foi o de não ter procurado um tratamento psicoterapêutico.
Antes ir atrás de um novo companheiro, decidiu se conhecer melhor e descobriu um enorme prazer na sua própria companhia. “Entendi quais eram os meus gostos e interesses. Eu havia me perdido na vida dele.” O sofrimento lhe rendeu um câncer de ovário do qual ainda está se tratando. Ela prefere não culpar o ex por isso. Entende ter sido parte importante de um processo de superação, que lhe colocou frente a frente com a atual mulher dele, na época a amante. “Ela me pede conselhos, está passando pelas mesmas coisas que passei, acha que ele pode mudar. Virei o suporte dela. Quando repasso mentalmente todos os acontecimentos, parece até mentira.”
“Nossa sociedade é narcisista e gera relações abusivas”
Para a especialista Claudia Riecken, cujos vídeos são compartilhados com frequência nos grupos de apoio, essas histórias são a prova de que vivemos uma epidemia de abandono no mundo todo, decorrente de famílias disfuncionais -- com relações marcadas pelos conflitos de toda ordem. “O que faz uma vítima entrar numa relação de abuso é a sensação de invalidação e de insuficiência do passado que se manifesta como uma necessidade absoluta de agradar o outro”, explica.
Os agressores, ela define como pessoas com desordem de personalidade narcisista. “Na prática, é alguém que finge descaradamente a ponto de convencer a vítima de que o problema é ela, gerando culpa e desconfiança sobre seu próprio discernimento.”
Por isso, depois da separação, ela aconselha buscar primeiro uma rede de apoio. “Não dê hora extra para o fantasma da violência. Procure ajuda de pessoas pacientes, que não se importem de ouvir aquela história repetidas vezes.”
O passo seguinte é o da construção do “autoamor”, que envolve a descoberta da autoestima, autoimagem e autoconfiança. “Esses aspectos ajudam a voltar a viver e a terapia tem um papel importante nessa recuperação. É preciso aprender a parar de se criticar e de se envergonhar pelo que passou. Ter compaixão por si mesma é fundamental.”
Depois, Claudia conta que é a hora de identificar alertas que possam sinalizar a presença de potenciais abusadores. “Desconfie de quem te estimula a sentir um ciúme legítimo, cobra uma responsabilidade emocional, deixa a relação pesada, ridiculariza ou menospreza suas ações.” Ao fim disso tudo, ela garante que a recompensa será um relacionamento saudável – e possível.
*Os nomes foram trocados para preservar a identidade das entrevistadas
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