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Eles já passaram pela 'cura gay' e relatam violência psicológica e culpa

Artistas e anônimos defendem toda forma de amor independente da orientação sexual de cada um - LEONARDO BENASSATTO/FRAMEPHOTO/ESTADÃO CONTEÚDO
Artistas e anônimos defendem toda forma de amor independente da orientação sexual de cada um Imagem: LEONARDO BENASSATTO/FRAMEPHOTO/ESTADÃO CONTEÚDO

Amanda Serra e Helena Bertho

Do UOL, em São Paulo

21/09/2017 04h00

A polêmica decisão do juiz da 14ª Vara do Distrito Federal, Waldemar Cláudio de Carvalho sobre a liminar que abre brecha para que psicólogos ofereçam a terapia de reversão sexual, conhecida como "cura gay", tratamento proibido pelo Conselho Federal de Psicologia desde 1999, está provocando um grande debate na sociedade. Há quase 30 anos, a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou a homossexualidade da lista internacional de doenças. E a determinação do juiz, apesar de manter a Resolução de 1999, não proíbe mais psicólogas (os) de fazerem atendimento de reorientação sexual procurada de maneira voluntário pela pessoa. 

Artistas como Anitta, Pabllo Vittar, Isis Valverde, Preta Gil, Fernanda Gentil, Daniela Mercury e muitos outros usaram as redes sociais para se posicionar contra a liberação e defender a diversidade sexual. 

UOL conversou com um homossexual, um bissexual e uma lésbica que participaram de terapias e grupos de apoios cristãos para que se “libertassem” de seus desejos sexuais. Abaixo, eles relatam o sentimento de culpa, dor e mostram como tais tratamentos só causaram ainda mais sofrimento psicológico. 

Lito (Miguel Angel Silvestre) assume seu namoro com Hernando (Alfonso Herrera) publicamente em cena de "Sense8" filmada na Parada Gay de São Paulo - Divulgação/Netflix - Divulgação/Netflix
Lito (Miguel Angel Silvestre) e Hernando (Alfonso Herrera) em cena de "Sense8" filmada na Parada Gay de São Paulo
Imagem: Divulgação/Netflix
 "É um processo de culpa e vergonha. Você sofre calado"

O estudante de medicina, L.P*, 29 anos, cresceu dentro um lar cristão e dos 17 aos 20 anos participou de reuniões e de sessões com psicólogas por orientação da família.

“Fiquei com um menino pela primeira vez aos 14 anos, os líderes da igreja que eu frequentava sabiam da minha bissexualidade e tratavam o meu processo como uma ‘cura’, chamavam assim inclusive. Aos 17, comecei a namorar uma menina, minha amiga até hoje, porque eu também gosto de mulheres. Aconselhado pelos tutores do grupo, comecei a fazer uma terapia que chamava ‘restauração da sexualidade’. Eu tinha que ler alguns livros indicados por um pastor e fazer fichamentos para depois discutir o conteúdo com ele e com a terapeuta.

Um deles foi o ‘Deixando o Homossexualismo', do Bob Davies Lori Rentzel. Com essa terminologia ‘ismo’, de doença. Como as histórias relatadas eram reais, fui atrás para saber o que havia acontecido com aquelas pessoas depois da 'cura gay'. Descobri que eles tinham desistido do processo e assumido, de fato, suas preferências sexuais. Isso me deu um clique porque vi que não existia uma ‘cura’, não iria deixar de sentir atração por homens.

Na mesma época, tive duas consultas com a psicóloga Rozangela Justino (percursora da liminar do Distrito Federal), mas as sessões foram canceladas quando ela teve o registro cassado pelo CRP, pois por lei não poderia oferecer esse tipo de tratamento. Comecei a me questionar ainda mais. 

Durante todo esse período, vivi uma dor silenciosa. Meus pais sempre fizeram parte da comunidade cristã. Eu reprimia minha vontade de ficar com meninos e não podia expor o que sentia, tinha que internalizar tudo. Se eu falasse, seria motivo de vergonha.

A verdade é que todos esses processos são provocados pela culpa cristã. Tratam a homossexualidade como um pecado, pior, como uma abominação. Então, o peso é sempre maior. Aceitar o amor entre pessoas do mesmo sexo ainda é um tabu para a nossa sociedade.

Quando saí do armário, foi doloroso para minha família e para mim. Mas a sensação de liberdade foi muito maior. Consegui falar e expressar de fato quem sou, um bissexual. Ainda que meus pais não aceitem meu relacionamento com homens.

Comecei a fazer terapia, a lidar com a culpa, vergonha e a minha orientação sexual. Entendi, inclusive, que a ideia de religião que eu tinha não era minha, mas dos meus pais, da minha criação. Os dogmas tinham sido construídos por eles. Passei a construir os meus próprios pensamentos, ter a minha própria fé e isso não significa que não acredito em Deus.

Meu pai se culpa, acha que ele não deu exemplo do que é ser homem. Quando, na verdade, é uma questão minha e não dele, claro. Homossexualidade ou heterossexualidade não se ensina, é algo que faz parte de cada indivíduo. Com quem você se relaciona ou deixa de se relacionar é só uma parte da vida de cada um".

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As reuniões tentam fazer com que você aceite e acredite apenas no amor entre homens e mulheres
Imagem: Getty Images
 “O líder da 'cura gay' deu em cima de mim”

"Após me descobrir homossexual aos 17 anos, me reprimi e busquei um grupo para deixar de ser homossexual. As reuniões aconteciam semanalmente na igreja evangélica que eu frequentava e reuniam pessoas que estavam passando pelo mesmo. Era um tipo de AA (Alcoólicos e Anônimos). Sentados em círculo, falávamos de nossas experiências, das dificuldades, recaídas e do desejo de nós manter 'firmes', já que a homossexualidade era um 'pecado'.

Participei de algumas sessões até que o líder de grupo, um cara mais velho do que eu, que dizia ser possível deixar ser gay, deu em cima de mim de maneira bem sútil. Ele disse que poderia me fazer uma visita qualquer dia, mas tinha medo do que poderia ocorrer. Naquele momento, percebi que, tanto o grupo, como o próprio testemunho de conversão desse homem, eram falsos e hipócritas. Sai da igreja e me aceitei como sou, um homem gay. Hoje sou feliz e não fujo mais de mim mesmo", conta o jornalista F.P, 30 anos. 

Bruna Marquezine dá beijo na boca de Flora Diegues em protesto a "Cura Gay"  - Reprodução/Instagram floradiegues - Reprodução/Instagram floradiegues
Bruna Marquezine dá beijo na boca de Flora Diegues em protesto a 'cura gay'
Imagem: Reprodução/Instagram floradiegues
 "Queria parar de ser um problema para a minha família"

"Aos 11 anos, eu já sabia que era lésbica. No ano seguinte, contei para a minha mãe que tinha ficado com uma menina. Ela achava que era por influência das minhas colegas do basquete, que não era algo meu. Ao contar, por medo da reação dela, diminui, falei que a iniciativa não tinha sido minha.

Começou aí o movimento da minha mãe de querer controlar isso em mim. Quando fiz 15 anos, ela me prendeu em casa, só me deixava sair para a escola. Eu não tinha vida social. Tudo para evitar que as outras mulheres me influenciassem. Além disso, ela tentava me fazer agir diferente, me vestir diferente, ser 'mais menina'.

A situação ficou tão exaustiva que comecei a achar que realmente tinha algo errado comigo. Um dia perguntei: 'mãe, o que você quer que eu faça?'. E ela me pediu para começar terapia. 'Vai no psicólogo, ele vai ajudar a tirar isso de você'. Aceitei.

Logo na primeiras sessões, o psicólogo começou a tentar fazer o que minha mãe pedia, me questionando exaustivamente - 'Tem certeza de que é isso que você quer?'; 'Por que você quer ser vestir assim?'; 'Não acha que alguém está te influenciando?'. Eu ia três vezes por semana ao consultório. Foi um período muito, muito difícil, porque eu já sabia muito bem quem eu sou e que gosto de mulheres, mas os questionamentos reforçavam aquela sensação de que havia algo errado comigo.

Ainda assim, era honesta e respondia seguidamente que sim, era isso que eu queria, sim, eu gostava de mulheres e não, não tinha ninguém me influenciando. No fim, o psicólogo percebeu que sou quem eu sou. Ele conversou com a minha mãe. A partir daí, a terapia se transformou e ele passou a trabalhar a minha autoaceitação e eu pude entender que não tem nada de errado comigo. Com o tempo, minha mãe também acabou aceitando", conta T.C., 20 anos, estudante.

*Os nomes dos entrevistados foram omitidos a pedido deles.