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Dar novo significado à vida é o caminho de volta para quem tenta o suicídio

Autorretrato pintado por Felipe de Stefano Balster Martins, que se suicidou em 2012, aos 34 anos - Reprodução
Autorretrato pintado por Felipe de Stefano Balster Martins, que se suicidou em 2012, aos 34 anos Imagem: Reprodução

Yannik D´Elboux

Colaboração para o UOL

10/09/2016 07h15

O desespero e a incapacidade de encontrar uma saída para o sofrimento são os sentimentos que tomam conta de quem decide acabar com a própria vida. “Estavam acontecendo muitas coisas ao mesmo tempo, sentia uma sobrecarga e a dor era tão grande que achei que a solução seria morrer”, relata Cássio Guedes, 29, médico, que tomou um coquetel de medicamentos com três vezes a dose letal, em 2012.

Enquanto esperava a morte chegar, deitado em um pasto no campus da faculdade de medicina onde cursava os últimos anos, Guedes pensou na irmã, no sobrinho e resolveu ligar para uma amiga pedindo ajuda.

Além de se salvar da morte, anos depois, o médico percebe que conseguiu se afastar do comportamento autodestrutivo e dar novo significado à vida. “Eu me sabotava, me colocava em situações de vulnerabilidade, eram tentativas erradas de gritar por socorro. Estava vazio de mim”, fala.

Na época em que só pensava na morte como meio de aliviar sua dor, Cássio Guedes estava sofrendo por causa da pressão da faculdade de medicina, do afastamento da família, após assumir sua homossexualidade, e também em razão do término de um relacionamento.

Depois de um ano sabático em tratamento, outros problemas apareceram, o médico teve de lidar com a morte da mãe e a volta para a faculdade, porém aprendeu a enfrentá-los de uma nova maneira. “Hoje me sinto forte para encarar as situações de dor, tenho fontes de apoio, faço terapia, academia, me cerquei de bons amigos e aprendi a investir no que me dá forças”, diz.

Além disso, o médico também conta que buscou “fontes de vida” e adotou três cachorros e um gato, que o ajudaram muito no início do tratamento. “A melhor parte do dia era voltar da faculdade para cuidar deles, pensar que eles dependiam de mim”, diz.

Dar novo significado à vida, como fez Cássio Guedes, é essencial para prevenir recaídas. Segundo a psicóloga suicidologista Karina Okajima Fukumitsu, tentativas anteriores aliadas a transtornos mentais aumentam em 40 vezes o risco de suicídio.

“Se a pessoa não fizer essa ressignificação, vai ter recidiva. Em média, de seis meses a um ano, poderá tentar de novo se não tiver acolhimento”, declara a psicóloga, autora dos livros “Suicídio e Luto: História de Filhos Sobreviventes” e “Suicídio e Gestalt-Terapia”, ambas da Digital Publish & Print Editora .

Sinais e isolamento

A cada 40 segundos ocorre uma morte por suicídio no mundo, segundo dados da OMS (Organização Mundial de Saúde), totalizando cerca de 800 mil por ano. Estima-se que as tentativas de tirar a própria vida correspondam a 20 vezes a quantidade de suicídios consumados, ou seja, uma a cada dois segundos.

O isolamento é um dos sinais mais importantes e recorrentes entre aqueles que cogitam se matar. A vontade de ficar só foi ficando cada vez mais extrema nos diários deixados por Felipe De Stefano Balster Martins, que se suicidou aos 34 anos, em 2012.

“Nenhum contato com a espécie humana, felizmente. E continuarei minhas leituras com suco de laranja e vodca”, escreveu ele pouco mais de um mês antes de se enforcar. Os trechos dos diários dos seus últimos três anos de vida estão no livro “Suicídio: a Epidemia Calada” (editora Ofício das Palavras).

A psiquiatra Maria Cristina De Stefano, mãe de Felipe, resolveu publicar a obra para servir de alerta a outras famílias que, assim como ela, talvez percebam que existe algo errado com a pessoa, mas nem sempre têm a dimensão da gravidade do caso.

“Ele começou a tratar a todos com distanciamento, estava deprimido, não gostava do que fazia, mas não tinha coragem de mudar sua vida”, conta. Juntamente com os diários, foram encontrados vários quadros que o jovem funcionário público pintava, mas escondia.

O desejo de permanecer sozinho era tanto que Felipe De Stefano comprou os equipamentos para tatuar a si mesmo em vez de ter de passar longas horas na companhia de alguém.

Além do isolamento, a psiquiatra notou no filho um quadro de alcoolismo cada vez mais agudo e uma maneira leviana de abordar a própria morte. “Ele falava de forma debochada e irônica sobre o tema”, conta Maria Cristina.

Em mais de uma ocasião, a psiquiatra recomendou que ele buscasse auxílio médico. “Hoje, percebo que Felipe tinha um perfil patológico para o suicídio, mas era muito inteligente e dissimulado, reagia com hostilidade e sarcasmo quando eu pedia a ele que procurasse ajuda”, diz.

Sempre dar atenção

Segundo dados da OMS, o Brasil é o oitavo país em número de suicídios. Foram registradas 11.821 mortes (9.198 homens e 2.623 mulheres) por essa razão em 2012, um aumento de 10,4% em relação ao ano 2000. Contudo, esse índice (5,8 por 100 mil habitantes) ainda representa a metade da média mundial.

Karina Fukumitsu percebe o suicídio como uma forma de comunicação extrema, a “ponta do iceberg” de disfunções individuais e familiares. Impulsividade, pensamento rígido e ambivalência são características frequentes no comportamento suicida.

Para a psicóloga, que administra dois grupos no Facebook sobre o tema, é fundamental levar a sério qualquer comentário sobre o suicídio e acabar com o mito de que uma tentativa não passa de uma maneira de chamar a atenção.

A prevenção do suicídio envolve três aspectos principais: tratamento dos transtornos psiquiátricos –como depressão e esquizofrenia, se existirem--, redução ao acesso a métodos letais (facas, lâminas de barbear, medicamentos etc.) e a difusão adequada de informações sobre o assunto.

Falar sobre o tema e romper com o tabu é o objetivo da psiquiatra Maria Cristina De Stefano com os diários do filho. “É uma epidemia calada, o suicídio continua sendo um tabu moral e religioso. A sociedade não sabe lidar com a morte antecipada.”

Para quem busca apoio emocional, além dos especialistas em saúde mental e suicidologia, existe também o serviço gratuito do CVV (Centro de Valorização da Vida), por telefone, e-mail, chat, presencialmente nos postos de atendimento e por Skype.