Tornar irmão mais velho responsável pelo caçula é prejudicial para ambos

Vivemos uma época marcada por novos modelos e configurações familiares. Nada mais natural, então, que mesmo nas famílias tidas como convencionais os papéis tradicionais de pai e mãe enfrentem mudanças em suas atitudes e necessidades. Essas transformações, obviamente, também atingem os filhos e a relação que mantêm entre si.
Existem crianças que antes mesmo de chegar à adolescência são "recrutadas" para cuidar dos irmãos menores. Esse tipo de comportamento é correto? Difícil rotular como “certo” ou “errado” uma situação que se mostra de maneira tão diferente em cada lar. Até porque, é uma dinâmica muito comum, já que não é sempre que os responsáveis têm condições de convocar alguém para cuidar dos filhos ou colocá-los em uma creche.
Na prática, famílias incapazes de cumprir suas funções emocionais e econômicas se omitem da função educadora e transferem aos filhos mais velhos deveres de adulto. “É uma situação que, para o primogênito, oferece ganhos questionáveis em termos de competência e responsabilidade. Por outro lado há perda da liberdade e do tempo livre. Já para os filhos mais novos, os benefícios se relacionam à socialização e companheirismo oferecidos pelos mais velhos”, explica a psicóloga cognitivo-comportamental Mara Lúcia Madureira. Mas pode-se também estabelecer uma relação de codependência com sequelas graves na idade adulta.
Há uma linha tênue que separa o limite entre um cuidado que pode ser positivo e o abuso que esse pedido pode trazer. Um bom exemplo é quando o irmão mais velho deixa de fazer algo que gosta porque precisa se ocupar do mais novo.
“É uma conduta que pode levar a um amadurecimento precoce, sem contar que o primogênito pode imaginar que se os pais não podem cuidar do filho menor, então, quem cuidou dele quando era pequeno? A imaginação infantil pode ir a mil”, explica Marcelo, psicanalista e terapeuta familiar Marcelo Lábaki Agostinho, do IP/USP (Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo)
Um ponto a ser observado é o quão constante é essa solicitação. “Uma coisa é uma mãe pedir para o filho mais velho ficar de olho no menor enquanto ela toma um banho; outra bem diferente é ela pedir que cuide dele durante horas”, diz Marcelo.
Papéis bem definidos
Independentemente da configuração familiar, é fundamental que os papéis estejam bem definidos. “Aos pais cabe cuidar, estabelecer e fazer cumprir regras de convívio familiar, oferecer suporte afetivo e transmitir valores que garantam a sobrevivência e adequação de seus membros na coletividade”, fala Mara Lúcia. Irmãos devem brincar entre si e aprender uns com os outros.
De acordo com os especialistas, o mais velho pode, sim, cuidar do caçula, desde que ele não se torne 100% responsável pelo outro – pois essa não é sua função. “Cuidar pode ser uma forma lúdica de estar com o irmão menor e até uma ação educativa, pois traz a ideia de que ele tem a capacidade de cuidar do outro”, diz Marcelo.
Para o psicólogo Ted Feder, da empresa Carevolution, de São Paulo (SP), o fato de pedir ajuda esporádica não exime os adultos de manter uma supervisão. “Cabe aos pais, quando solicitarem ao mais velho cuidar do menor, explicar bem o motivo e conversar. É preciso ouvir o primogênito e entender sua resistência, dúvidas e angústias. O mesmo deve ser feito com o menor, para que a situação contribua e não cause conflitos e sofrimento à família”, afirma.
Riscos e consequências
Pais que insistem em comportamentos displicentes e abusivos podem provocar, mesmo sem querer, consequências desastrosas para a vida dos filhos. Há o risco, por exemplo, de o irmão menor passar a sempre se colocar como dependente do mais velho, inclusive na maturidade. Outra possível situação é o mais velho, sem se dar conta, manter o menor como alguém que precisa sempre ser cuidado, dificultando o amadurecimento do mesmo.
Na melhor das hipóteses, o caçula pode desenvolver afeição e identificação paternas em relação ao irmão e, na pior, aprender a pensar que todos da família estão no mundo para servi-lo permanentemente. Ou, ao se sentir um peso para o primogênito, ter dificuldades em determinadas situações sociais ao longo da vida.
Segundo Mara Lúcia, psicóloga cognitivo-comportamental, raiva, revolta, frustração e indignação contra irmãos mais novos e genitores são sentimentos frequentes entre filhos cuidadores que, não só deixam de receber cuidados e atenção, como têm de desenvolver amadurecimento precoce para dar conta das imposições da família e cuidados com filhos que não escolheram ter.
Pais mais sensíveis conseguem perceber a tempo o quanto estão prejudicando o relacionamento entre os filhos, mas muitas vezes a situação persiste por anos. A mudança do quadro só vai acontecer quando o filho que se sentir mais incomodado decidir romper o padrão.
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