Casais que moram com parentes disputam espaço e autoridade
Por não terem como sustentar sozinhos uma casa, alguns casais buscam ajuda da família para dividir moradia. Outro motivo que leva adultos casados a não abandonarem o teto dos pais é a imaturidade. "Às vezes, são pessoas que não têm condições de se cuidar”, diz Isabel Cristina Gomes, psicanalista e professora titular do departamento de Psicologia Clínica da USP (Universidade de São Paulo).
"Nesses arranjos familiares é muito importante cada um saber qual é seu lugar. É fundamental definir os espaços, não só os físicos", afirma Isabel. Disputas por espaço e autoridade são questões recorrentes para casais que moram com parentes. "O problema é maior para a mulher. Embora hoje ela ocupe muitos espaços fora de casa, ainda é muito forte a questão doméstica. Estar em uma casa da qual ela não é a dona é muito difícil".
Respeitando espaços
"O espaço é fundamental para a independência, para que os indivíduos possam se expressar e viver de acordo com sua concepção de vida e seus valores", afirma Clarice Ehlers Peixoto, antropóloga e professora do departamento de Ciências Sociais da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro). Célia Regina Henriques, terapeuta de família e professora da PUC-RJ (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), também acredita que espaço e autonomia estão intimamente ligados.
Segundo a professora da PUC, ajustes e limites entre os coabitantes têm de ser estabelecidos com conversas constantes. "A privacidade vai ter que ser conquistada diariamente. Não tem outro jeito. Convivendo em um mesmo ambiente, a questão sempre será de fazer acordos. Gosto de pensar nos espaços comuns: cozinha e sala. É negociação pura. Com quem fica o controle da televisão?", exemplifica.
Estranho no ninho
Rodrigo Rezende, 36, namorava Fernanda havia dois anos quando o pai dela o convidou a se mudar para a casa da família. À época, tinha 22, vivia em Mogi das Cruzes, mas trabalhava em São Paulo. Para facilitar a vida, aceitou o convite para morar em uma das salas da casa, onde Fernanda dividia quarto com uma das irmãs, enquanto em outro cômodo ficava outra irmã com a filha bebê. "Tinha certa privacidade, mas limitada. Intimidade com ela rolava com certos cuidados, horários e lugares. É muito complicado conseguir espaço com um monte de gente em casa. O lance foi fingir não estar ouvindo muita coisa e não arrumar discussões desnecessárias".
Rodrigo viveu por três anos nessas condições. Ele conta que a relação, em geral, era boa e se sentia bem acolhido: ajudava o sogro com algumas tarefas da casa; a sogra o tratava como um filho. Mas, apesar disso, havia sempre um incômodo no ar. "Tinha que me desdobrar para falar coisas simples, para não ofender ninguém, afinal, eu estava no espaço deles".
A psicanalista Isabel conta que a adaptação é sempre mais complicada para a pessoa que não pertence àquela família. "Para aquele que está com seus parentes não há tanto problema. Pior é para quem não fazia parte desse grupo e tem de se adaptar a hábitos que não faziam parte da história dele. E vai ter de aceitar. Não dá para chegar numa casa que não é a sua e querer impor as regras".
Três gerações sob o mesmo teto
A antropóloga Clarice acredita que, graças à mudança de mentalidade pela qual estamos passando nas últimas décadas, duas gerações podem relativizar suas diferenças e conseguir uma convivência confortável. Mas quando há uma terceira geração sob o mesmo teto, tudo complica. "Quando você tem gerações mais velhas, principalmente quando já estão aposentados, há outro ritmo de vida. São necessários novos arranjos não só no espaço da casa, mas no ritmo cotidiano da família".
Ela exemplifica o problema com um caso encontrado em suas pesquisas. Um casal de idosos que recebeu o filho, a mulher e as duas netas adolescentes. "Os mais velhos não podiam mais dormir após as refeições porque as netas chegavam da escola. A avó passou a ser a empregada da casa e ficava desesperada porque a cozinha nunca ficava limpa".
Além de ajustes na rotina, com uma divisão adequada de tarefas para amenizar os conflitos, quando há netos envolvidos na situação a autoridade sobre eles também estará em disputa. "Os avós podem ajudar nos cuidados, mas têm de deixar claro que quem determina as regras são os pais. Muitas vezes esses pais passam a bola para os avós e as crianças ficam perdidas. Outras vezes, os avós querem assumir tudo e desautorizam os pais, o que também é ruim para as crianças", diz Isabel.
Tensões do convívio
Clarice diz estar convencida de que a coabitação entre três ou mais gerações dificilmente será harmônica. "Nas camadas médias e superiores da população, quando os pais têm maiores possibilidades financeiras, preferem pagar o aluguel dos filhos a mantê-los na mesma casa. Nas camadas mais baixas, como não existe essa possibilidade, as pessoas tem de conviver com as tensões", afirma, com base em mais de dez anos de pesquisa sobre o tema.
Isabel, porém, diz que as circunstâncias que levam as famílias a dividirem moradia, bem como a duração desta vivência, determinam o grau de conflito das relações. "Se a situação for motivada por uma dificuldade real e for passageira, não vai ter tantos problema, os lugares de cada um serão respeitados. Agora, se o que mobiliza a situação são questões emocionais, de falta de maturidade, aí está feita a confusão. Vai ser sempre uma situação em que o conflito já existia antes e é agravado pela convivência diária".
Rodrigo, que passou por esta experiência, concorda que em longo prazo o desgaste é inevitável. "Existe um limite para essa condição. Não tínhamos ideia de quanto tempo aquilo poderia durar e começou a ser desgastante demais. Você acaba ficando sem perspectiva, tem muito comodismo. A Fernanda não crescia, por não sair do convívio familiar. Eu estava abrindo mão da minha vida, conversei com ela e decidi sair de lá", conta o rapaz que, após a mudança, passou um tempo afastado da namorada, mas reatou a relação que permanece até hoje.
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