Elas estudaram, se especializaram, construíram uma carreira bem-sucedida, ganharam dinheiro e, como consequência disso, a possibilidade de comprar o que quiserem, viajar e curtir tudo aquilo que feministas norte-americanas almejavam quando planejaram queimar sutiãs, em 1968. E, após tantas conquistas, decidiram abrir mão da independência e da autonomia financeira para fazer o caminho inverso: em vez de sair de casa para trabalhar, muitas mulheres vêm abdicando da profissão para assumir os cuidados com o lar e as crianças.
Embora ainda não haja nenhum dado estatístico, sabe-se que o nascimento do primeiro filho é o fator preponderante dessa decisão feminina. A publicitária Luciana Brisola Pinheiro Monaco, 31 anos, de São Paulo, fez essa opção. Após dez anos trabalhando em uma das principais instituições financeiras do país, ela abandonou um bom cargo executivo e a promessa de voos profissionais ainda mais altos ao se tornar mãe de Melina, hoje com sete meses. "Eu cheguei a retornar ao escritório depois da licença. Trabalhei uma semana e meia para ter certeza do que queria. E desde que a Melina nasceu eu soube que queria acompanhar os primeiros anos de vida dela e ser mãe em tempo integral", conta.
Para a psicopedagoga Milene Massucato, 33 anos, de São Bernardo do Campo (SP), a decisão passou por um processo de amadurecimento. Quando Nicolas nasceu, ela tinha acabado de montar um consultório para atendimento psicopedagógico e reforço escolar. Milene retomou o trabalho quando o bebê tinha dois meses. O filho, que hoje tem três anos, ficava ao lado dela, quietinho, mas Milene percebeu que a estratégia não daria certo, principalmente para quem lidava com crianças com dificuldade de aprendizagem.
"O problema é que não queria deixá-lo na escolinha nem com a avó, por achar que pelo menos no primeiro ano é importante para a criança estar perto da mãe", conta. Quando Nicolas completou um ano, ela resolveu parar de vez. Hoje, Milene tem outra filha –Lorena, de cinco meses– e, esporadicamente, faz trabalhos de revisão e redação em casa, além de manter um blog no qual conta suas experiências como mãe integral e dona de casa.
Milene Massucato, 33 anos, com seus filhos Nicolas, de três anos, e Lorena, de cinco meses
Dependência do marido
Tanto Luciana quanto Milene só mudaram suas vidas porque tiveram o apoio de seus maridos, emocionalmente e financeiramente. Para Rosa Ester Rossini, professora titular do Departamento de Geografia da USP (Universidade de São Paulo) e especialista em questões relacionadas a gênero e trabalho, é esse o ponto nevrálgico da situação: depender do dinheiro do parceiro para se manter. "Para que esse acordo dê certo, precisa haver uma grande sintonia entre o casal. Muitos homens, infelizmente, acabam jogando na cara da parceira que são os responsáveis pelo sustento da casa", diz. E muitos menosprezam as tarefas domésticas e os cuidados com os filhos desempenhados pelas mulheres.
Por mais que a mulher tenha acumulado uma reserva financeira durante a carreira, as economias podem ser destinadas a outros objetivos da família, que não as demandas do dia a dia. E dinheiro acaba. Para sanar necessidades femininas, é preciso pedir ao marido. "É ruim não ter liberdade para gastar com o que der na telha. Embora meu marido me deixe à vontade para usar o dinheiro da família, fico com a consciência pesada quando compro algo para mim", afirma Milene Massucato. "Procuro adquirir coisas quando entra uma 'graninha' com o blog. Caso contrário, aviso o Ramiro antes ou saio com ele. Por ele, nada disso é problema. Eu é que fico com a sensação de parecer dondoca".
Estigma e preconceito
A impressão de Milene encontra eco em uma parcela da sociedade –composta em boa parte por feministas– que enxerga nesse tipo de arranjo familiar uma espécie de retrocesso na evolução feminina. E em um momento da humanidade em que as mulheres, pelo menos boa parte das ocidentais, é livre, até mesmo para ocupar o cargo de presidente de um país. Para a psicóloga Cecília Russo Troiano, autora do livro "Vida de Equilibrista – Dores e Delícias da Mãe que Trabalha" (Ed. Évora), existe um enorme preconceito em relação às novas donas de casa.
"Há uma espécie de patrulha social que considera a mãe em tempo integral ou a mulher que trabalha no lar uma alienada. Infelizmente, as pessoas ainda têm a visão estigmatizada e antiga da rainha do lar dos anos 60", afirma. Um dos principais enganos é achar que uma dona de casa, hoje em dia, precisa esperar o marido retornar do trabalho para saber o que se passa no mundo. A internet é o antídoto básico contra a desinformação. Fora isso, há inúmeras possibilidades de se informar, como TV, cursos, grupos de estudo etc.
O fato de a mulher não investir na carreira e usar o salário do marido não a coloca como submissa a ele, segundo Cecília. "Ela se põe ao lado parceiro, pois esse arranjo foi combinado entre os dois. Ela fez uma escolha porque teve opções à disposição. Antigamente, não havia esse direito. O que as pessoas precisam entender de uma vez por todas é que se a mulher pode fazer o que quiser atualmente, isso inclui investir no modelo de vida que lhe parece o melhor", fala.
Para a pesquisadora e economista Tânia Fontenele, doutora em Psicologia Social e do Trabalho pela UnB (Universidade de Brasília), de forma alguma as novas donas de casa podem ser consideradas um símbolo do retrocesso. "Pelo contrário. Elas são representantes da conquista plena dos direitos femininos. Até a Camille Paglia, uma das feministas mais radicais da história, já escreveu artigos dizendo que a escolha de ter uma vida doméstica não deve desqualificar uma mulher", afirma.
A psicóloga Cecília Troiano afirma, também, que o maior preconceito vem justamente por parte de outras mulheres e que existe um paradoxo: aquelas que se dividem entre os filhos e a carreira também são alvo de preconceitos e críticas, algumas muita duras. "Eu mesma, quando preparava o livro 'Vida de Equilibrista', fui questionada. Disseram que eu não tinha condições de escrever um livro sobre a relação entre mãe e filho, já que eu não passava muito tempo com o meu", conta.
Busca do equilíbrio
Nem Luciana nem Milene descartam a possibilidade de, um dia, voltarem a se dedicar com afinco às carreiras, mas não alimentam expectativas. Para a professora Rosa Ester Rossini, da USP, sair totalmente do mercado de trabalho é sempre um risco. "Bastam seis meses de ausência para qualquer profissional ficar desatualizado", diz a especialista, que sugere às mulheres testar o esquema de "home office" ou de jornada flexível, se a empresa permitir.
Para a economista Tânia Fontenele, porém, o mundo atual globalizado oferece muitas possibilidades além do velho e convencional emprego formal, com cartão de ponto, crachá e carteira assinada. "As pessoas podem atuar como free lancers, consultoras, à distância, abrir um negócio...", lista ela. "As mulheres devem aprender a viver sem ansiedade e a se libertar da síndrome da Mulher Maravilha. Se escolheram ficar em casa, ótimo, têm mais é que curtir. E se querem investir numa carreira e viajar pelo mundo, tudo bem, também. O importante é saber o que quer e apostar nisso, em vez de tentar conciliar mil coisas, estar em um lugar desejando ficar em outro, adoecer ou viver à base de antidepressivos", diz.
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